A Editora Ercolano lança, neste mês, seu primeiro título de 2023: “A menina que não fui” (La Fille manquée, 1903), de Han Ryner. Inédito em língua portuguesa, a edição brasileira foi traduzida diretamente do francês a partir da reedição francesa de 2012 (Gay-Kitsch-Camp), documentada e comentada por Marie-France David-de Palacio e Patrick Cardon.
A edição da Ercolano abre com o prefácio de João Silvério Trevisan, intitulado “O Menino que era Rainha” em alusão à ascensão e ao declínio do protagonista François de Taulane, apelidado de “mulherzinha” e “rainha Françoise” pelos colegas que por ele sentiam tanto desprezo quanto atração. O olhar de Trevisan traz elementos-chave para atualizar a discussão sobre “A menina que não fui”, ressaltando sua pertinência para a contemporaneidade.

Na passagem do século XIX para o XX, a França vivia um conflito que se estende aos nossos dias: por um lado, a imposição de uma sociedade laica e, por outro, o enfraquecimento do catolicismo nessa mesma sociedade. Além disso, o discurso médico-científico e a então recém-nascida psicanálise passavam a ocupar o papel antes desempenhado pela religião. Nesse contexto, o enredo de “A menina que não fui” se situa, em grande parte, na instituição de ensino Saint Louis de Gonzague, frequentada pelo próprio Ryner durante a juventude. Os diretores religiosos, em sua hipocrisia, são retratados não apenas como incapazes de sustentar a própria moral que pregavam, mas também como corruptos, sendo assim uma das causas da triste sina do protagonista e narrador em primeira pessoa.
Homossexual, François é atormentado por seus desejos e por um possível desconforto em seu gênero. Ele decide contar por escrito sua luta interior e todas as dificuldades que enfrentou por causa de seus amores e delírios. Assim como “O Ateneu”, de Raul Pompeia e “Sébastien Roch”, de Octave Mirbeau, os traços notavelmente intimistas e escandalosos de “A menina que não fui” se distinguem dos chamados “romances de costumes colegiais” e, de maneira geral, da literatura de sua época.
“A menina que não fui” é apenas uma das muitas facetas de Han Ryner, pseudônimo de Henri Ner (1861-1938), que se aventurou nos mais diversos universos literários e abordou temas como a energia universal, o espaço e os alienígenas. Entre 1880 e 1938, Ryner publicou mais de cinquenta obras, entre elas ensaios, contos, romances, poesia e teatro. Transitou por diversos meios, como o círculo literário de Alphonse Daudet e os grupos anarquistas, nos quais atuou tomando a defesa de Sacco e Venzetti no famoso caso que condenaria ambos à morte. Entusiasta da filosofia grega, ganhou os apelidos de “Sócrates contemporâneo” e de “Príncipe dos narradores”, um tanto limitantes se considerarmos o caráter universalista do escritor.
Polêmico, Ryner tendia ao estranho e ao fantástico, à ironia e ao humor ácido, presentes em algumas passagens de “A menina que não fui”. No entanto, sua natureza pacifista, que também pregava o amor livre, preconizava um individualismo não egoísta: sua noção de individualismo nada mais é que a liberdade interior, condição para a liberdade humana coletiva.
Numa incursão pelo romance psicológico do século XIX, mas com resquícios do naturalismo, e através de uma narrativa não linear que recorre ao monólogo interior assim como a outros subgêneros literários – o epistolar, o diário e as confissões –, “A menina que não fui” não desperta apenas o interesse dos leitores LGBTQIA+. Instigante e profundo, qualidade um tanto rara em romances de leitura fluida, todo leitor se envolve na trágica vida do melancólico François, uma espécie de incel de seu tempo.
Em meio ao prazer da leitura de “A menina que não fui”, também se experimenta desconforto. Não por acaso, o livro causou escândalo quando foi publicado, e possivelmente renovará os debates contemporâneos sobre gênero e sexualidade.
FICHA TÉCNICA
TÍTULO: “A menina que não fui”
AUTOR: Han Ryner
TRADUÇÃO: Régis Mikail
PREFÁCIO: João Silvério Trevisan
ILUSTRAÇÃO: Felipa Queiroz
PROJETO GRÁFICO: Estúdio
Margem
FORMATO: 13X19 cm
NÚMERO DE PÁGINAS: 256
PREÇO: R$ 116,00
ISBN: 978-0-9894 2394-5
DATA DE LIVRARIA: 28/04/2023
EDITORA: ERCOLANO
(www.ercolano.com.br)
Sobre a editora
A Editora Ercolano, fundada pelos editores Régis Mikail e Roberto Borges, chega ao mercado inspirada no arrebatamento através da experiência estética e tem a proposta de descobrir ou reencontrar publicações pouco conhecidas, injustamente esquecidas ou ainda não ouvidas. Com foco em obras literárias, dramatúrgicas ou musicais, nacionais e internacionais, os dois primeiros lançamentos são: “A menina que não fui” e “Manet no Rio”.
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