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Nestas semanas que antecedem as eleições municipais no Brasil, o app SCRUFF, em parceria com GAY BLOG BR, convidou o ativista Renan Quinalha para uma série de lives sob o tema #VoteLGBTQ.
Na primeira live, que aconteceu em 29 de outubro, o ativista de direitos humanos e professor de Direto na Unifesp, esclareceu questões recorrentes e contextualizou a história do movimento LGBTQ+ brasileira frente aos avanços nos respectivos direitos no país.
No última quinta-feira, Renan Quinalha convidou Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), para falar sobre representatividade trans na política.
Renan Quinalha: Para quem não conhece, a Bruna é uma ativista importantíssima aqui no Brasil, uma das nossas grandes lideranças do movimento LGBT. Queria trazer uma questão para você: os LGBTs sempre estiveram fora dos espaços de poder, sempre foi muito difícil acessar esses espaços no Brasil porque nunca tivemos uma aceitação dos nossos corpos nesses espaços institucionais. Você, junto à ANTRA, fez um levantamento importante em relação ao crescimento da candidatura das pessoas trans, e queria que você começasse falando um pouco sobre esse panorama das eleições de 2020.
Bruna Benevides: Fazemos esse levantamento desde 2012, mas não tinha tanto aprofundamento porque não tínhamos essa forma de se organizar e ainda estávamos dependentes de outras pessoas que nos representassem. Até então, ficávamos nos bastidores e não tínhamos muita representatividade. A partir do momento que a gente começou a intensificar nossa participação em palestras e na nossa agenda, a gente entendeu que é importante mapear as candidaturas. Aumentamos em, pelo menos, 200% da quantidade de candidaturas (de pessoas trans) quando comparada a 2016, mas também temos uma grande polarização no campo democrático da esquerda e pessoas em partidos de extrema-direita. Historicamente, a maioria das candidaturas LGBTs antes do governo progressista eram de direita, mas com o resgate da nossa voz e a necessidade de representação isso acabou mudando. Hoje em dia, me preocupa um partido que levanta bandeira contra o direito dos trabalhadores ter LGBTs que apoiem. Me pergunto o que você pensa sobre isso, Renan… a direita dificulta o avanço das nossas pautas, não acha?
Renan Quinalha: A gente sabe que tem candidatura de pessoas trans por partidos de extrema direita, e é uma coisa que me choca saber que está distribuído dessa maneira. A população LGBT não tem um espectro definido, já que ela está marcada por diversos tipos de divisão, de gênero, de classe social, e dentro da própria comunidade LGBT ainda há muitos preconceitos, como racismo, discriminação social, e não há essa ideia de que os LGBTs devam ter uma consciência política de esquerda. Algo que me choca também é como que pessoas LGBTs estão em partidos de extrema-direita que são contra direitos da cidadania LGBT. As pessoas desse espectro não conseguem organizar pautas relacionadas diretamente as necessidades dos LGBTs. Por outro lado, isso não quer dizer que a esquerda sempre tratou bem os LGBTs. Nós sabemos a dificuldade que muitos setores da esquerda têm com as pautas LGBT, mas sabemos que os LGBTs precisam ter a conscientização e o voto da representatividade e identidade de gênero. É importante o que os LGBTs estão levando enquanto projetos, ideologias, desejos para esses espaços de poder. Uma coisa que eu queria ouvir de você é sobre o que você acha das que as pessoas que procuram candidatos LGBT devem se atentar? Nem sempre a pessoa sendo um LGBT representa os LGBTs…
Bruna Benevides: O principal é entender que o fato de sermos parte daquela comunidade não significa que estamos qualificados para debater aquela pauta. O fato de eu ser uma mulher trans e negra não necessariamente me habilita a falar dessas pautas, então o primeiro ponto é: não caiam na armadilha que só o fato da pessoa ser o que ela é, é suficiente para representar. O que queremos é algo além da representatividade, com o compromisso que sua representatividade tem para além do indivíduo. Também não posso me colocar num campo de disputa achando que minha experiência é a mesma de todas as pessoas ou ignorando que minha experiência só fala de mim. Quando entro para uma disputa politica, eu deixo de ser a Bruna pra representar uma grande parcela da população que inclusive tem que se sentir representada por mim. Então não leve apenas a identidade em consideração, mas sim as contribuições que as pessoas tem. Política é sobre compromisso, coletivo, social e com a transformação de um projeto politico que dê conta da nossa existência. Se a pessoa não tem histórico de luta no seu micro ou macro, no bairro, na escola ou qualquer ambiente que esteja, isso me leva a ter um alerta. Da onde a pessoa está tirando as ideias? Precisamos ver pessoas que estão vindo de uma história, de diálogo, de construção, para que, de fato, tenhamos uma representação e um alívio em ter alguém ali que sabemos que estará comprometido com nossas vidas. Fico preocupada com representatividade, pois tem gente que além de LGBT, também é negra, e está em partido de direita e me pergunto se é aquela representatividade que a gente quer. A ANTRA entendeu que havia uma dificuldade das pessoas, mesmo as militantes, em dizer “o que nós queremos?”. Construímos uma agenda com cerca de 70 pautas e não se esgota nela, não nasce nela e não acaba nela, para pensarmos em construir uma continuidade pelas pautas LGBT e trans.
Renan Quinalha: Essa iniciativa da agenda é importante porque, de fato, chegamos ao paradoxo de que temos o reconhecimento de direitos de modo formal, quando na verdade vimos nas últimos eleições um presidente eleito que é abertamente LGBTfóbico. Temos uma cruzada moral muito forte de fundamentalistas religiosos contra nossas existências. É importante que tenhamos uma dimensão de que a luta não terminou. É o contrário: estamos no começo, estamos “engatinhando” e ela não se encerra aqui. Não basta o reconhecimento desses direitos, que é bastante precário, que é de decisões da suprema corte. Não conseguimos aprovação do legislativo brasileiro, no congresso nacional, de leis de proteção de pessoas LGBTs. Você entende que a falta de pessoas LGBTs no legislativo também se reflete nessa não aprovação de legislação especifica? Isso está relacionado?
Bruna Benevides: Totalmente! A falta de representatividade como um todo é uma das maiores feridas que temos na estrutura politica. Temos falta de mulheres, de negras e pessoas comprometidas em geral e isso me preocupa. Há a Damares (Ministra), que é uma mulher, mas que está a serviço do patriarcado. Também há o líder da fundação Palmares, que é negro, mas está a serviço da branquitude. Sempre penso se nós, LGBTs, temos o compromisso de colocar pessoas que nos representam dentro daqueles espaços. Então se hoje estou preterindo uma candidatura LGBTQIA em detrimento de um hétero cis, eu tenho que ter a ideia de que estou corroborando com a exclusão de pessoas que vivenciam grande parte das relações que vivenciamos como grupo. Estou jogando a responsabilidade da minha vida, de pessoas lésbicas, bissexuais, na vida de alguém que a qualquer momento vai usar nossa pauta como moeda de barganha. Acredito que nós temos, como sociedade e ativistas, um compromisso em colocar pessoas LGBTI no jogo de disputa politica e nos espaços de poder para que as pessoas possam ter um outro olhar e construir uma nova forma de fazer política. Há 27 anos, quando foi fundada a primeira instituição trans, as travestis não sabiam ler e escrever. Quem fez as atas e a organização foram os pesquisadores que tem papel fundamental nesse processo, mas a gente (pessoas trans) aprendeu. Aprendemos a estudar, a ler, a escrever. Hoje temos doutoras trans, temos deputadas e vereadoras. A gente agradece aos aliados, mas agora podemos falar por nós mesmas. Por isso, se torna urgente visitar a lista que foi feita de LGBTs em especial com as trans nas regiões e não apenas se comprometer com o voto. Você deve fazer com que sua comunidade entenda a importância daquela candidatura pra ti e pra eles. Eu não atuo apenas na defesa dos direitos das trans, mesmo sendo minha agenda principal, mas é além. É urgente que não guarde pra si. Conversem com os outros e “levante a bandeira” perante os LGBTs.
Renan Quinalha: Nós não podemos reduzir nosso papel político e nossa existência a um voto que damos a cada dois anos numa urna eletrônica. A gente precisa, de fato, fazer um trabalho de convencimento e isso é um fato importante para a comunidade LGBT. Há muitos candidatos de pessoas que nos representam bem, mas é importante que as pessoas se aprofundem em cada um dos candidatos. É importante que a gente escolha a partir da identidade de gênero e orientação sexual, mas também da historia, da defesa das pautas, do engajamento das lutas, que favoreçam a comunidade LGBT, e outras agendas que a gente considera fundamental. Não basta o mundo de LGBTs “felizes, saltitantes e coloridos”. Precisamos mais que isso. Precisamos de uma sociedade democrática com igualdade de oportunidades para todo mundo. É importante olhar isso nesse processo eleitoral. É importante cobrarmos também e acompanharmos essas candidaturas. Fortalecer as lutas da comunidade LGBT. Temos que repercutir dados e pesquisas para familiares e amigos. Precisamos fazer esse esforço que vai além desse processo eleitoral. A gente tem visto um aumento de candidaturas LGBTs e isso é muito bonito. Agora, assim como não basta para ser LGBT pra representar a comunidade, também não basta ter candidaturas LGBTs, pois precisamos eleger essas pessoas também. Temos uma sub-representação muito grande da comunidade LGBT. A maior parte dessas candidaturas não consegue ter êxito. Por que temos essas barreiras? Por que não conseguimos que essas pessoas consigam chegar a esses postos?
Bruna Benevides: Continuamos com a velha lógica da velha política de que nunca se teve tantos LGBTIs, mulheres e pessoas negras disputando um cargo, mas quando vamos ver as pessoas majoritárias e as pessoas “cabeças de chapa” e que puxam votos, eles são homens, cis, héteros e brancos. A gente ainda continua em uma inserção na política partidária tutelada pelos donos dos partidos. Isso é prejudicial. Hoje, acredito que nós só temos uma pessoa trans em todos os partidos que faz parte do diretório nacional. Se não for só uma, são duas ou três, o que é muito pouco. Isso denuncia essa estrutura de que não se faz o mesmo investimento em candidaturas LGBTIs quanto se faz com outras candidaturas. Todo mundo sabe, em sua município, prefeitura e estado quem são as “candidaturas popstars” que estão ganhando os maiores investimentos para serem eleitas. Todo mundo sabe aquelas que não tem dinheiro, às vezes nem pra pagar passagem. É bizarro observar a quantidade de candidaturas que já nasceram precárias e que já nasceram fadadas a fazerem um trabalho de curral eleitoral. Então não termos candidaturas majoritárias de LGBTIs. Na nossa pesquisa, da ANTRA, 74% das pessoas LGBTs alegaram não ter apoio material, pessoal, financeiro ou institucional para suas candidaturas. Por aí só já pensamos e traçamos uma expectativa de quantos serão eleitos. Em 2016 tivemos 89 candidaturas e só 8 foram eleitos. Dá 10%. Se essa proporção ficar, teremos 28 eleitos, o que até acho muito dado os acompanhamentos que a gente faz. Acho que será uma grande denúncia observar a quantidade de pessoas eleitas e fazer esse paralelo. Mais uma vez os partidos vão estar negligenciando e colocando como pauta secundária (as pautas LGBTs). Eu sou de Niterói, aqui temos algumas candidaturas LGBTI, mas a única pessoa que se comprometeu com a agenda da ANTRA foi um homem hétero cis. E olha que temos trans, negras, trans negras, bissexuais e outras pessoas que não se deram o trabalho de ler, pesquisar ou se comprometer com a vida das pessoas trans. A ANTRA se coloca nesse lugar de interlocutora. Há uma falta de interesse dos partidos e como eles negligenciam as pautas indenitárias. Eles dizem que discutir questões da população LGBTI, da população trans, das negras, não e mais importante que a reforma trabalhista. Ora, pra quem e a reforma trabalhista? E quem é que a reforma trabalhista vai atingir de cheio? Em especial os trabalhadores e trabalhadoras que são LGBTIs, especialmente os que estão em condições precárias. Nenhuma opressão, nenhuma agenda, nenhuma urgência, nenhuma pauta se sobrepõe a outra. E possível lutar por uma correta distribuição de renda, divisão de terras, revisão de questões problemáticas, mas também incluir um olhar sobre como isso impacta os LGBTI.
Renan Quinalha: Nosso sistema eleitoral depende do sistema partidário, como se fosse um filtro anterior. Se os LGBTs não conseguem acessar o sistema partidário em condições de igualdade de disputa em relação a outras candidaturas, não tem como acessar esse sistema eleitoral. A gente sabe os riscos que isso implica no Brasil, em cidades menores, por exemplo, como é difícil a pessoa ser LGBT que tem uma cara publica na cidade. Como implica ameaças. Renildo José nos anos noventa se assumiu bissexual e foi assassinado. Jean Wyllys teve que sair do país e renunciar seu mandato; Marielle Franco no Rio de Janeiro também (que foi assassinada). Quando esses corpos LGBTs se colocam na linha de frente, é sempre um risco muito grande. No Brasil, não temos programas de proteção as defensoras e defensores de direitos humanos adequados como deveríamos ter considerando o risco que isso implica. É importante que estimulemos essas candidaturas e fortaleça como comunidade, mas também é importante que haja essa briga dentro dos partidos. Não basta ter só a candidatura. Precisamos que tenha recursos. Isso ficou muito claro no exemplo da luta das mulheres que conseguiram cotas nos partidos, nas cotas femininas, desde o fim dos anos noventa e inicio dos dois mil. E de repente as mulheres viram que as estavam sendo colocadas como candidaturas laranjas para os homens receberem fundos partidários, tempo de televisão, e as mulheres davam o nome e emprestavam o CPF para os homens cumprirem como exigência legal. Aí veio esse fortalecimento por uma luta por mais recurso, por mais tempo de TV, por mais visibilidade e condições de igualdade nas disputas. Mesma coisa com a população negra. Essa vai ser a primeira eleição que candidaturas negras precisam ter proporcionalmente recursos materiais, tempo de televisão, visibilidade, pra essas candidaturas. Não basta ter candidatas mulheres e negros, mas é necessário garantir recursos proporcionais e mínimos pra essas candidaturas pra diversificar a representação. E a gente não tem ainda em relação aos LGBTs. Não tivemos decisão nesse sentido ou legislações que tivéssemos um mínimo de igualdade de recursos. Como você vê essa questão de ações afirmativa dentro dos partidos perante os LGBTs?
Bruna Benevides: Queria falar de um momento anterior, que em determinado momento da nossa história, instituiu-se que os movimentos sociais estão a serviço dos partidos. Isso é louco pensar quando a lógica deveria ser o oposto. O jogo político, os partidos, a constituição da nossa câmara legislativa estão lá para construir aquilo que é proposto pela sociedade civil, pelas instituições, pelos fóruns de organização. Então uma lei, quando ela é proposta, ela é construída a partir desses espaços de discussão. Também observo que muitos partidos optam por ter proximidade de diálogo com o movimento, mas na hora de lançar determinadas candidaturas, escolhem pessoas que tem proximidade com a pauta partidária. E aí tem questões de classe, de raça e de gênero muito bem definidas. E aí pelo fato da pessoa ser gay, lésbica ou trans, ela se torna uma emissária dessas pessoas que não se sentem representadas. Quem é essa pessoa? No que ela está trabalhando? As pessoas precisam entender que quando elas se colocam nessa disputa político partidária, elas precisam ceder bastante. Dentro dessas discussões político-partidárias é onde acontece o assédio, as preterições, a invisibilização, a falta de investimento. Por isso que talvez seja mais importante pros partidos terem pessoas que vão comprar a agenda partidária acima do coletivo do qual a pessoa faz parte, exatamente para quando alguém for brigar: “Ué? Mas cadê o dinheiro? Não foi distribuído como deveria?”, a pessoa vai dizer “Não, mas a gente tem que fazer essa discussão internamente”. Não é sobre isso. Na hora que essa pessoa for eleita, ela não vai representar somente o partido ou somente ela. A falta de investimento, mesmo na formação política inclusive. A falta de investimento na qualificação dessas candidaturas, mas também de investimento efetivo, realmente faz uma diferença gigantesca. Os LGBTIs precisam ter esse compromisso com a sociedade civil, mas também mudar essa estrutura lá dentro. Também não vejo um campo favorável para isso. Há enfrentamentos diversos, mas ainda muito incipientes. O que nós vemos, quando pessoas trans se colocam de forma efetiva dentro dos partidos pra querer uma mudança, real e já, as pessoas são expulsas dos partidos, são silenciadas, preteridas, como tem casos que aconteceram com mulheres trans e travestis, e negras que aconteceu no Rio de Janeiro. É preocupante não acompanharmos esse jogo dos partidos, especialmente dos partidos com os quais ainda temos diálogo. Eu estou denunciando algo que precisa ser revisto. Inclusive para que eu possa, você e outras pessoas possam se sentirem representadas e compelidas a participar desse jogo político e partidário.
Renan Quinalha: Uma questão que gostaria de ouvir um pouco mais é sobre uma “cilada” de pessoas do campo progressista que ainda reproduzem esse discurso de que “essas questões indenitárias são menores”, “no fundo elas são responsáveis pelo que vemos no Brasil dessa reação conservadora”, dessas políticas indenitárias que tiramos o foco das transformações mais estruturais que precisamos, que são as transformações econômicas, mais distribuição de renda. Gostaria de ouvir um pouco mais sobre isso. Queria ouvir sobre a importância de não cairmos numa visão despolitizada dessa identidade LGBT e de ser LGBT.
Bruna Benevides: Essa é a “terra plana da esquerda” (risos). Só gostaria de resgatar rapidamente que quando falo da importância de formação política, eu não falo da inteligência das pessoas, mas sim garantir que as pessoas tenham pleno acesso aos estatutos do partido. Tenham pleno acesso como está constituído o jogo político. Não tem a ver com inteligência porque acho que todo mundo tem a possibilidade de aprender e ser ensinado inclusive se preparar para fazer uma disputa como merece e precisa.
Respondendo sua pergunta, eu penso que ficamos muito limitados porque a garantia do acesso aos direitos é o nosso maior desafio. Três pilares que considero por conta da discussão sobre direitos, acesso e garantia é porque a gente não tem essa noção da onde nasce esses direitos, e aí da onde a gente faz para articular pra ser apresentado e por fim, efetivado. Essa efetivação tem a ver com o acesso e com a garantia do acesso. Por que quando as pessoas dizem: “A gente não precisa ter esse olhar interseccional”, de fato, se nós cumpríssemos apenas o que tá previsto na constituição e os respectivos profissionais nos seus códigos de ética, eu já me sentiria feliz e maravilhosa porque teríamos um país progressista, democrático, que entende e dialoga e convive bem com a diversidade. Não é isso que acontece. Por que que nós devemos insistir pra dizer que nossa identidade, nossa localização social, a partir dos marcadores que nós temos, é que de fato nos impedem de acessar o SUS, por exemplo. Eu costumo fazer uma leitura bem “rasa” quando vou discutir sobre direita e esquerda, é porque a esquerda consegue dizer que nem todos nós somos iguais e que, portanto, pra acessar a UBS do bairro, quem vai ter melhor acesso é a mulher branca, o homem gay branco, do que a pessoa negra. A direita vai dizer “somos todos iguais, aquilo funciona igual pra todo mundo”, o que é mentira. Essa discussão é necessária para rompermos com essas barreiras. Então por que as mulheres negras não estão chegando? Por que as travestis não estão acessando? Exatamente por questões que estão enraizadas e que precisam ser enfrentadas. Então se a gente não enfrentar os processos de exclusão que se baseiam na discriminação, a gente vai continuar insistindo em uma democracia que é falida. Então quando as pessoas cis, hétero e branca, nos veem nesses espaços, sentem como se não tivessem uma identidade, quando na verdade, eles são a identidade dominante. Nós representamos a ruptura com esse padrão e por isso eles não querem discutir. Fica, de certa forma ,parecendo assim: “os viados, as travestis, sapatões e drags estão organizadas e somos minorias”. E a gente começa a ver o discurso do racismo reverso, heterofobia, cristofobia… isso é a maior denúncia de que o sistema está ruindo e que eles estão desesperados. Exatamente porque nós não vamos aceitar mais essa ideia infantil, que é violenta, que “somos todos iguais”, porque nós não somos e nem queremos ser. Pelo contrário: eu até falo “gente, esquece a palavra somos todos iguais e esqueçam igualdade, vamos falar de equidade”. Creio que a gente precisa de equidade. Não há como discutir acesso a direitos, equidade, enfrentamento das desigualdades, da violência e direitos humanos sem ter o olhar que observe como cada violência se dá nos corpos das pessoas que componham a nossa democracia e nossa sociedade.
Renan Quinalha: Você falando de equidade me lembrou de uma frase do Boaventura de Souza Santos, sociólogo português, em que ele diz: “Temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza. E temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. A nossa luta é por ter uma equidade, preservar nossas diferenças, o que nos singulariza, o que nos constitui, que é tão importante e central pra gente, que é nossa identidade. Ao mesmo tempo, uma igualdade de oportunidades, de acesso, e por isso que a interseccionalidade é fundamental na nossa luta.
Bruna Benevides: Por isso que a meritocracia, talvez, seja uma falácia. Exatamente porque a igualdade é uma falácia. Se não temos as mesmas oportunidades, não vai existir meritocracia.
Renan Quinalha: Não tem justiça alguma, né? Tem gente que parte “lá na frente”, e tem gente que está “ali atrás”, e o acesso é diferente. Os bloqueios todos. A meritocracia é um discurso que no fundo ajuda a mascarar a dificuldade e a desigualdade de acesso que nós temos. Pra encerrarmos, a gente tem ocupado cada vez mais espaços, acho que esse tipo de debate que estamos fazendo aqui está acontecendo em vários lugares, várias associações estão cada vez mais fortalecidas, como a ANTRA, a ABGLT. A gente tem um movimento LGBT cada vez mais “enraizado” pelo país. Apesar do momento que a gente vive que acho que coloca os LGBTs pra baixo. Não é fácil acordar e levantar ouvir uma “piadinha” homofóbica do presidente. Outro dia uma fala ofensiva de uma ministra ou de um ministro. Isso nos afeta emocionalmente profundamente. Queria ouvir um pouco mais sobre como você está lendo desse momento, que é crítico e difícil, mas como você trouxe na sua fala, a gente tá ocupando espaços e fazendo debates que não conseguíamos fazer antes. Esse debate da representatividade LGBTs. Como você vê essa perspectiva de futuro apesar desse momento difícil?
Bruna Benevides: Sinceramente acho que as pessoas que fundaram o movimento, que começaram lá atrás, elas nunca pensaram que estaríamos vivendo um momento que temos hoje. Isso já é suficiente para dissermos “lutar vale a pena”. Embora tenhamos uma agenda “bizarra” da ideologia de gênero, nunca se falou e se discutiu tanto sobre gênero. Então acho que a resposta que nós temos dado frente a LGBTfobia é essa de estarmos cada vez mais organizados e organizadas. Eu acredito nas instituições, especialmente as públicas, então acho que por isso que nossa luta é tão ferrenha na defesa da democracia. Nós queremos que essas instituições funcionem de forma adequada para garantir o acesso a nossa população. Então nós temos hoje um movimento extremamente forte, extremamente articulado. A gente avançou bastante, mas a gente ainda padece de um processo em que as pessoas que componham a nossa comunidade se reconheçam como parte dela. Acho que isso é tática de guerra. O maior desafio que nós temos é estarmos cada vez mais juntos, mais próximos, mais possíveis de ouvir, mesmo na dissidência. Acho que temos um problema de quando discordamos, a gente se torna inimigo. A política faz muito isso. A gente precisa avançar mais. A gente precisa colocar, de fato, a prática da nossa construção política, uma prática de alteridade. Acho que temos um legado grande que está sendo deixado. Nos últimos dez anos especialmente, em termos de construção de documentos, fortalecimento, empoderamento. A gente precisa trazer cada vez mais pessoas para que elas sejam “tocadas”. Acho que precisamos aprender com os evangélicos a “catequizar” os LGBTIs, e um meio de fazer com que todo domingo os LGBTIs fossem pra um lugar pra ouvir o que a gente tá falando. Existe um jargão de que “política não se discute”. Se discute sim! É por não discutir que a gente está vendo tudo que estamos vendo. Cada vez mais eu quero e acredito que temos esse legado, mas também temos referencias que vale a pena lutar e que as pessoas não se sintam representadas.
Renan Quinalha: Vale a pena lutar! Gostaria de te agradecer por tudo que você faz.
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