Chico Felitti conta detalhes do audiolivro sobre a vida de Elke Maravilha

Após o sucesso das obras Ricardo e Vânia e A Casa, o jornalista Chico Felliti revela a trajetória pessoal e profissional de uma das artistas mais queridas do país

O jornalista Chico Felitti, autor de Ricardo & Vânia e A Casa, lançou há poucos meses o audiolivro “Mulher Maravilha”, a biografia sobre Elke Maravilha. Modelo, atriz, cantora, poetisa, jurada e intérprete, Elke era, acima de tudo, uma boa contadora de histórias – e ela tinha muitas. Ícone dos gays, ela inspirou gerações ao longo de décadas, sendo a ‘russa’ (na verdade alemã) mais brasileira que o país já teve.

Reprodução

Como surgiu a ideia de escrever uma biografia sobre a Elke Maravilha? Na verdade é um audiolivro, né? Por que em formato áudio?

Esse livro nasceu como meu projeto de conclusão da faculdade de jornalismo, em 2006. Eu era um moleque que descolou o telefone da Elke, liguei para ela e ela topou me receber. Nos encontramos algumas vezes, mas o livro acabou não saindo. Quase 15 anos depois, a Storytel, um aplicativo de audiolivros que estava chegando no Brasil, me convidou para usar essas entrevistas e viajar o Brasil entrevistando as pessoas que conviveram com a Elke para fazer uma biografia e eu topei de imediato.

Chico Felitti – Reprodução

Ela sempre foi a musa dos gays, como surgiu essa adoração dos gays por ela? 

Ela sempre foi uma figura muito exuberante, com aquelas roupas que bebem muito do universo da noite LGBTQ, então acho que nasce daí a fascinação da comunidade por ela. Eu lembro de ser uma bichinha criança no interior e ver a Elke na TV e ficar maluco com aquilo. Mas a ligação era mais do que estética, ela realmente trafegava na comunidade. A Elke sempre advogou em nome dos LGBTQs e das profissionais do sexo. Fazia eventos de graça para a comunidade, ajudava ONG, deu muito dinheiro para gente da comunidade.

Existe alguma razão para Elke dizer que era de origem russa, quando na verdade ela havia nascido no sul da Alemanha?

Eu tenho a teoria de que a Elke adaptou alguns acontecimentos da sua vida para ter uma história mais interessante. Além dessa história de dizer que tinha nascido na União Soviética, quando na verdade tinha nascido na Alemanha nazista, ela dizia que foi convidada a participar do Cassino do Chacrinha sem nunca ter visto o programa. O que foi contestado pelo Boni, que então dirigia a TV Globo. Ele disse que a Elke pediu para ser jurada, teve reuniões com ele antes de ir ao ar. De novo, acho que é um misto de montar uma história mais interessante com criar uma personagem que era avoada, para quem as coisas caíam no colo. A Elke não gostava de deixar transparecer que lutava pelo que queria profissionalmente e que era ambiciosa.

Eu vejo a Elke como uma mulher muito à frente do seu tempo, suas declarações eram sempre muito sábias e polêmicas. Ela foi censurada muitas vezes na TV?

Pior é que não. Acho que ela conseguia envelopar assuntos tão difíceis de um jeito tão doce que as pessoas não se davam conta de que ela era uma ameaça à ditadura, uma anarquista. Então ela falava de aborto, pedia direitos para os LGBTQIA+, contava dos seus vários homens e tudo aquilo parecia palatável. 

Só houve o incidente em que ela rasgou um cartaz de “Procura-se”, com a foto do filho da estilista Zuzu Angel, que já havia sido morto pela Ditadura, e foi levada presa. Mas, mesmo na prisão política, ela conseguiu criar um personagem doido que confundiu a cabeça da polícia. Ela não chegou a ficar uma semana presa.

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As pessoas associam muito a imagem da Elke como jurada de programas de auditório, entretanto ela ia muito além disso, era atriz, modelo, apresentadora, cantora e poetisa. Dentre essas diversas áreas que ela atuou, em qual delas mais se destacou?

Acho que ela era um conjunto disso tudo, uma multiartista, porque não via nada como trabalho. Ela dizia que só estava sendo ela, falando as coisas que gostaria de falar e cantando as músicas que gostaria de cantar. Tanto que ela sempre disse que era uma péssima atriz, por mais que tenha ganho vários prêmios de atuação. “Eu não sei ser outra coisa a não ser eu mesma”, ela dizia.

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Durante a sua pesquisa para o audiolivro, houve algo que você tenha descoberto a respeito dela que te deixou bastante surpreso?

Além das descobertas jornalisticamente mais relevantes, como por exemplo que a Elke tinha nascido na Alemanha, e não na Rússia, e que ela tinha ficado apátrida porque não tinha pedido a renovação da sua cidadania brasileira (e não porque a Ditadura cassou seus direitos), o que me deixou mais surpreso foi o rastro de generosidade que a Elke deixou. Todas as centenas de pessoas que entrevistei tinham uma história positiva dela: do amigo que estava sem dinheiro e ela deixou um maço de notas na soleira da porta dele, até um homem que a acompanhou até a delegacia, quando ela foi presa pela Ditadura, e ela fazia questão de abraçar toda vez que o via pelo Rio de Janeiro.

É verdade que ela foi uma das modelos mais requisitadas do país mas a personalidade forte acabou atrapalhando a carreira? Isso teve a ver com a Ditadura?

Sim, a Elke chegou a ser a modelo mais requisitada do país. É porque ali no fim dos anos 1960, ela inventou um jeito novo de desfilar: enquanto todas as manequins faziam cara de séria, ela gargalhava, mexia os braços, dançava. E isso virou sua marca registrada. Mas daí ela começou a recusar trabalhos se a marca exigisse que ela desfilasse de um jeito que ela não quisesse ou com uma roupa que desrespeitasse sua essência. Então acho que ela poderia ter ganho mais dinheiro, se não fosse por sua crença estética no que era.

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Quais foram os principais desafios que a Elke viveu ao longo da vida dela? Foram desafios mais pessoais ou profissionais?

Acho que a vida toda dela foi um desafio, por mais que ela fizesse parecer uma coisa fácil. Imagina 50 anos atrás ser uma mulher poliglota, que cursou um pouco de medicina, um pouco de grego clássico, um pouco de filosofia, que fez vários abortos, que saía com os homens que quisesse, que se vestia como uma punk e levava uma cusparada na cara na Copacabana dos anos 1970. E ela ainda fazia parecer fácil.

Eu soube certa vez que quando ela tinha um programa de entrevistas no SBT nos anos 90, Silvio Santos a demitiu quando ela fez um casamento gay no programa. Essa história de fato ocorreu?

De fato houve uma simulação de casamento gay no programa que ela apresentou por poucos meses, no começo da década de 1990. E o programa foi tirado do ar pouco depois. Mas os problemas entre a Elke e o Silvio Santos eram muitos. Ela desobedecia as ordens dele, peitava o chefe nos bastidores, abordava temas que ele reprovava (na estreia do programa, por exemplo, ela convidou o Jorge Lafond e eles conversaram sobre racismo e homofobia, imagine só…). Então não posso afirmar que o fim do programa dela foi por causa da simulação de casamento gay (já que o casamento gay não era legalizado), mas pode ter sido um fator, sim.

reprodução

A Elke teve problemas com alcoolismo já nos últimos anos de vida, isso se agravou em função do afastamento da TV?

Pelo que consta, a Elke sempre bebeu. E muito. Ela recusava a pecha de alcoólatra, mas chegava a beber uma garrafa de cachaça todas as noites antes de dormir. E foi um hábito bem constante na sua vida: ela dizia que não tomava água. Se tivesse com sede, tomava cerveja com Campari.

Nos últimos anos, ela estava com problemas financeiros, soube que ela nunca deu importância ao dinheiro e, claro, ajudou muita gente; mas afinal, a Elke era uma pessoa que tinha muitos amigos ou ela passava por um momento de solidão aos 71 anos de idade?

A Elke era ao mesmo tempo uma pessoa com milhares de amigos e uma pessoa extremamente solitária, no fim da vida. Por mais que tivesse amigos em todo lugar (todo mesmo, conheci uma freira de um convento mineiro com quem ela se reunia uma vez por ano para tomar um porre de vinho), ela foi se fechando. Ela não gostava de falar de problemas de saúde, ou de dinheiro, nem mesmo com os amigos mais próximos. Então ela foi se afastando, saindo de cena aos poucos e ficando cada vez mais solitária.

Como era a Elke em relação ao ego?

Ela tinha um discurso de alguém muito humilde. Sempre se recusou a ser biografada porque dizia que importante era a Simone de Beauvoir, que ela mesma era ninguém. Mas, ao mesmo tempo que tinha esse discurso, ela alterava fatos da sua história para torná-la mais interessante, como por exemplo dizer que tinha nascido na União Soviética durante a Segunda Guerra (quando ela verdade nasceu numa cidade razoavelmente pacata da Alemanha). Ela criava uma história para si mesma, um personagem que levou até o fim.

Reprodução/audiolivro

Dentre as suas três obras: Ricardo e Vânia, A Casa e Mulher Maravilha, qual deles te deu mais prazer em escrever e qual deu mais trabalho em termos de pesquisa?

A Elke foi sem dúvida a mais prazerosa. Viajei o Brasil todo refazendo os passos dessa mulher que levava alegria aonde quer que fosse. Conheci pessoas formidáveis e todo mundo tinha uma memória alegre da Elke. A mais difícil foi sem dúvida A Casa, que é a história da seita de João de Deus. Cheguei a Abadiânia, a cidade onde ele montou seu império, assim que o João Teixeira foi preso. As pessoas da cidade ainda tinham muito medo, não queriam falar. Fui ameaçado de morte, além dessa dificuldade. Mas, ao cabo de um ano, saiu um bom livro.

Por que a Elke, em um determinado momento de sua vida, se sentiu abandonada pela comunidade LGBT?

A partir de certo momento, no começo dos anos 2000, uma parte do ativismo LGBTQIA+ começou a acusar a Elke de machismo, de homofobia, de misoginia. Aconteceu uma coisa parecida com a Rogéria também. Essas acusações vinham de algumas frases que ela proferia, tipo “O homem é melhor que a mulher até na hora de ser mulher”. São ideias que, analisadas fora de contexto, soam preconceituosas, é claro. Mas talvez a gente pudesse ter a sensibilidade de pensar na trajetória da artista que diz essas coisas. 

Ela era uma mulher criada em outra época, com um vocabulário que não era o que adotamos hoje, então é claro que ela não ia exprimir suas ideias como nós exprimimos. Mas acredito que as intenções da Elke (e a da Rogéria também) sempre foram boa. Elas sempre lutaram pelos direitos dos LGBTQIA+. Mas ainda bem que, no último ano de vida, a Elke foi convidada para fazer um comercial com ativistas mais recentes, tipo o pessoal da Revolta da Lâmpada, e se sentiu reinserida na comunidade.

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A Elke transbordava alegria e bom humor, mas o que a deixava triste?

Ela passou uns últimos anos difíceis. Ficava muito triste com injustiças e passou a cada vez ver mais injustiças na política nacional. E também não gostava de preconceito.

Sobre qual personalidade você gostaria de escrever uma biografia e por que?

Eu sou louco por cultura pop e TV aberta, então aposto que uma biografia do Jorge Lafond daria muito pano para a manga. E a da Xuxa também, claro, mas ela mesma deve lançar um livro de memórias em breve.

Existe a perspectiva de Mulher Maravilha ser lançado impresso?

Sim, deve sair em versão impressa em 2021.

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Link do audiolivro:
https://www.storytel.com/br/pt/books/1231482-Mulher-Maravilha-E03




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