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“Um Rolê na Pólis: o Feitiço e o Feiticeiro”

Em sua coluna, o psicanalista Diogo de Castro Gomes faz uma leitura de como a inclinação humana para a agressividade é exacerbada pela tecnologia e proximidade entre os seres falantes, estimulando conflitos na contemporaneidade

COLUNISTA

Diogo de Castro Gomes
Psicanalista, Doutorando em Psicanálise pela UERJ e Formação Psicanalítica pela ELF (CRP 05/31652)📍Contato para atendimento online ou presencial: diogo@gay.blog.br

É inegável a inclinação da humanidade para destruição e, portanto, para uma conduta associal¹. Em nossos dias vivemos fenômenos que já estão petrificados como modelos, modos e destinos culturalmente aceitos para obter algum ganho de satisfação graças a certas operações psíquicas; na contemporaneidade aquela tendência à agressividade apresenta-se trivialmente, em ato, como agressão, ou seja, como algo impossível de ser simbolizado e que retorna na extensão do processo de subjetivação.

Ao olharmos retroativamente, concluiríamos que houve um grande avanço técnico-científico se compararmos com os anos, por exemplo, de 1930. Esses avanços, quando aplicados sobre o espaço e o tempo, contribuiriam para um balanço positivo na economia daquilo que entendemos e/ou aceitamos como felicidade; “escutar a voz de um filho meu que está morando a milhares de quilômetros de distância”, inequivocamente traz um ganho de felicidade, de satisfação; mas, se não “houvesse ferrovias para abolir as distâncias, meu filho jamais teria deixado sua cidade natal”, afirma Freud em 1930.

Quase cem anos depois, aqui estamos relativizando as ambivalências afetivas, os ganhos e as perdas, os achados e os perdidos. Então, pergunto: nosso planeta de um azul tão lindo está pequeno demais? Ficamos muito próximos um do outro? Talvez sim. Isto, de repente, explicaria a ânsia de dominarmos outros planetas para assim destruirmos suas cores belas? Será que somos capazes de suportar os matizes das belezas alheias?

Aqui, o termo “alheio” não é aleatório. Nos alienamos nesse outro que se apresenta nem tanto como meu semelhante, aquele com quem estabeleço uma relação simétrica, mas esse outro linguageiro constituinte do sujeito onde certas operações psíquicas se desenrolam e a partir de onde a ideia de alienação – do desejo – deve ser promovida.

Nessa conjuntura, onde delineia-se a ambivalência ciosa das relações dos seres falantes, e onde a relatividade espaço-temporal traz o distante, ou seja, o diferente para a palma da minha mão, ratificamos o símile schopenhaueriano usado for Freud: somos como os porcos-espinhos se ficamos muito próximos, os espinhos de um outro porco-espinho podem nos ferir; ou, ainda, como afirma Lacan em 1953-54: “cada vez que nos aproximamos dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade – o desejo do desaparecimento do outro como suporte do desejo do sujeito”².

Mas esse não é o problema já que nessa perspectiva apontamos para uma operação de estrutura, ou seja, da agressividade como tendência ao modo de identificação narcísico; o problema é quando o simbólico se depara com um impossível de traduzir. Quando isso acontece o que emerge é a agressão, a violência.

A proximidade com esse “outro” que imaginariamente é julgado obter um ganho maior de satisfação diante daquilo que deseja, aponta para (des)responsabilização do sujeito diante do seu desejo. Quando este último não localiza “o lugar certo de colocar o desejo” – como diz Caetano Veloso em uma de suas canções – ele pode vir a preencher apaixonadamente essa falta por objetos que pululam no mundo; vale destacar que o objeto é, do ponto de vista pulsional, o que há de mais variável podendo materializar-se em um ideal a ser seguido.

A satisfação que um ideal fornece aos participantes da cultura é de ordem narcísica. A emergência, por exemplo, do multiculturalismo aponta para a impossibilidade da completude exatamente porque revela as diferenças; e aquele que conseguiria, de modo parcial e singular satisfazer-se passa ser um inimigo a ser destruído, odiado, aniquilado, cancelado por não estar em consonância com mandamentos homogeneizantes que são ditados por esse objeto “externo”, em outras palavras, por um líder sobre o qual recai um “brilho” especial e sobre o qual o sobrenatural adquire materialidade.

Desse modo, quando esse objeto, encarnado na figura de um líder, substitui o lugar de ideal de eu “a crítica exercida por essa instância [ideal de eu] silencia; tudo que o objeto faz e pede é justo e irrepreensível… na cegueira do amor nos tornamos criminosos sem remorso”³; nos tornamos vassalos apaixonados ao ponto de nossa liberdade confundir-se com o desenvolvimento de nossa servidão.

A troca da função do ideal de eu por aquele objeto intensifica a ilusão de um totalidade ótima que remontaria uma perfeição infantil quando certas tendências pulsionais eram satisfeitas diretamente como se houvesse uma correspondência inequívoca entre uma oferta e uma demanda. Ora, a ocultação do fracasso dessa síntese – que obtura a falta constituinte do processo de subjetivação – também não acontece na perversão fetichista quando um objeto é mistificado como recurso para aquela ocultação?

Nesse cálculo o recalque não seria o operador. A realidade desagradável, ao impor a existência da diferença, é desmentida exatamente porque não há tradução simbólica para essa diferença. Os sujeitos “sabem”, reconhecem a lei, a “realidade”, mas estas são desmentidas porque engendram angústias que são ocultadas por objetos vários: um ideal encarando na imagem de um líder político, um líder religioso ou de pop star genérico.

Nesse cenário ratificamos o aforisma freudiano: “não existe afeto inconsciente” (FREUD, 1915). Em outros termos, no afã de proteger-se contra angústia – a angústia é o afeto que não engana, adverte Lacan em 1962-63 – o sedimento de ódio escapa à “percepção” porque nessas circunstâncias operamos como um perverso fetichista que “desmente” a castração sob a fórmula “eu sei que…, mas mesmo assim…”. “Eu sei que essas explicações são racionais e prováveis, mas mesmo assim acredito que nas vacinas têm um chip criado por comunistas…”; de nada adianta racionalizar, porque o que está em jogo não é de ordem cognitiva e sim de ordem “afetiva”. Credo quia absurdum⁴.

Então, na saída desse texto introduzo uma questão de caráter homológico: a massa estaria para o líder assim como o fetichista estaria para o fetiche?


¹ Em que rede tu te deitas? “…o ódio contra determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva” (FREUD, 1921). Nossas redes são sociais ou associais?!

² Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-54); Jacques Lacan

³ Psicologia das massas e análise do eu (1921); Sigmund Freud.

O Futuro de uma ilusão (1927); Sigmund Freud.




Diogo de Castro Gomes
Diogo de Castro Gomes
Psicanalista, Doutorando em Psicanálise pela UERJ e Formação Psicanalítica pela ELF (CRP 05/31652)📍Contato para atendimento online ou presencial: diogo@gay.blog.br

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