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Cleber Reikdal e Gustavo Cavalcanti estão juntos há 13 anos, ambos são empresários e professores de patinação artística, gelo e rodas em Curitiba. Quando decidiram aumentar a família, não optaram por um criança, mas logo três (na ocasião os irmãos tinham 8, 6 e 4 anos de idade). As crianças viviam em um abrigo religioso na cidade e, após passar por todos os trâmites burocráticos relacionados à adoção, as crianças ganharam um novo lar.
Uma das crianças, a mais velha, deu sinais desde cedo que estava insatisfeita com o seu gênero masculino, pedindo aos pais para usar roupas e acessórios femininos, o nome também foi alterado para Maria Joaquina, em homenagem a personagem da novelinha Carrossel do SBT. A partir dali, Cleber e Gustavo deram todo o apoio a menina e tiveram que aprender sobre como é ter uma filha transgênero na infância.
Mesmo passando por alguns episódios motivados pelo preconceito (transfobia), eles seguem adiante sem medo de ser felizes.

Após quanto tempo juntos surgiu o interesse pela adoção? A ideia partiu de ambos?
Não sei te dizer ao certo. A gente sempre quis ter filhos, desde pequeno a gente sonha com isso. Mas, primeiramente, demos entrada e ficou parado. Dois anos depois, exatamente no mesmo dia, coincidentemente, demos novamente a entrada com o pedido. E aí o processo foi concluso e ficamos habilitados. Trinta dias após a habilitação a Vara de Infância estava ligando sobre as crianças.
E vocês já tinham planos de adotar mais de uma criança ou aconteceu por acaso?
Demos entrada para duas crianças, porém nos últimos dias trocamos para três.
Em 2016, vocês finalmente conseguiram adotar três crianças irmãs (Maria Joaquina, C* e T*) sendo a primeira uma menina trans, que atualmente está com 12 anos. Aos oito anos ela começou a pedir pra usar roupas femininas e estava insatisfeita com a aparência masculina. Como vocês reagiram?
No começo eu não conseguia entender, até porque a gente tinha a nossa experiência de vida como a verdadeira em muitos casos. Eu me entendia como sendo gay, mas não precisava usar roupas de meninas. Então levamos tanto a Maria quanto nós mesmos ao psicólogo, o que ajudou a entendermos que todas as pessoas são únicas. A Maria conseguiu se entender melhor também. O processo de adaptação da Maria sendo uma menina não foi tão complicado para nós, foi algo mais fluído se comparado com outros casos que vemos no HC de São Paulo, onde ela faz acompanhamento. Mas tivemos nossas dificuldades no início até entendermos que as pessoas não precisam se enquadrar nas “caixas” preestabelecidas pela sociedade.

Você se lembra como foi primeiro encontro com os três irmãos, quando vocês os conheceram? Eu imagino a ansiedade, nervosismo em poder conhecer as pessoas que passarão a fazer parte da sua vida. Inclusive eles moravam em um lar religioso, né?
Foi realmente surpreendente. Você não sabe o que esperar. Tem o medo de se você vai gostar e de se eles vão gostar de você. É estranho, mas ao mesmo tempo maravilhoso. O lar, que é extremamente religioso, sempre reforçou a identidade de gênero cis normativo em todas as crianças, embora Maria já tivesse cabelos grandes, usasse brincos e roupas femininas antes. Isto reforçou toda uma confusão na cabeça dela, a qual depois foi se desconstruindo.
Vocês são empresários e professores de patinação em Curitiba, o interesse da Maria Joaquina pela patinação surgiu após a adoção?
Sim. Maria não sabia patinar. Sua primeira aula ela se segurava na barra e chorava muito de medo. Os irmãos já saíam patinando. Depois ela aprendeu e revelou todo um talento para ser uma das melhores patinadoras que o Brasil já teve até hoje.

Foi um desafio para vocês lidarem com a transexualidade da Maria Joaquina, principalmente por se tratar de uma criança ainda muito jovem?
Lidar com a identidade de gênero dela foi difícil pois tudo era novo para nós. Fomos aprendendo com o tempo, conforme a demanda surgia. Sempre estivemos acompanhados da opinião dos profissionais, como a psicóloga dela e ainda da equipe multidisciplinar do HC de São Paulo. A grande vantagem, é que os mais jovens podem fazer o tratamento hormonal dando tempo para amadurecerem e assim acompanhar o caso.

Quando vocês a levaram ao médico, ela foi diagnosticada com Disforia de Gênero, o que seria isso?
Em resumo, Disforia de Gênero é quem não se identifica com o gênero biológico.
Os documentos dela já foram alterados para o sexo feminino? Ela já pode usar o nome social em todos os âmbitos sociais?
Ela usa o nome social. Porém, tudo é uma questão de empatia. Por exemplo, se eu quiser lhe chamar agora de Jonas, passo a lhe chamar assim. Mesmo que você diga que é André, continuo a chamar de Jonas. Parece maluco isto, mas tem gente que é assim… Você diz o nome social e ela não aceita. Quem tem que aceitar o nome social é a própria pessoa. Ela tem um processo na justiça de mudança de nome na documentação, porém estamos aguardando decisão da juíza para tal.

Como é o relacionamento dela na escola com as outras crianças? Sabemos que esse ambiente escolar às vezes é bastante tóxico por causa do bullying.
Sim, a escola é o pior lugar. Existe o bullying assim como com alguns atletas de patinação também. Porém, Maria vai na psicóloga para poder se empoderar como a pessoa que é, permitindo assim ser mais forte.
No passado, houve um problema envolvendo a Confederação Sul-Americana de Patinação, em que poucos dias antes da competição ocorrer, você soube que ela não poderia participar. Na ocasião a confederação alegou que a inscrição só poderia ser feita na categoria do gênero de nascimento, isto é, Maria só poderia participar se fosse inscrita na categoria masculina, gênero que ela não se identifica. Na sua opinião, ainda existe muito preconceito dentro do esporte de modo geral?
Na verdade a Confederação não aceitou ela nem no masculino nem no feminino. Inclusive após a decisão da Justiça de permitir ela competir, eles entraram na Justiça contra a decisão do Juiz para que ela não competisse mesmo.
Nunca foi uma questão documental, mas de transfobia. O próprio presidente deu uma entrevista para o UOL em que deixa muito transparente sua posição. Inclusive, na matéria do Fantástico, feita antes da decisão final do supremo, ele diz que nunca teve e nunca terá um caso assim competindo.
São várias atitudes que os dirigentes de rodas promovem reforçando sua não aceitação na presença de Maria. Ano passado, também impediram ela de usar o banheiro. Este ano tentaram barrar sua participação de volta, tendo o caso ido novamente para apreciação da defensoria pública. Eles não aceitavam a documentação de controle hormonal dela, embora a World Skate, entidade máxima da patinação no mundo, tenha dito que Maria estava elegível para competir conforme a documentação apresentada.
Existe preconceito nas pessoas. Não vou generalizar ao esporte. Posso dizer que em rodas tem gente que apoia a Maria, manda mensagens de apoio sempre, porém os gestores não aceitam a sua presença. Já na patinação no gelo, existe uma política clara e transparente de aceitação, não temos dificuldades com gestores, contudo temos conhecimento de que existem sim pais de atletas que não aceitam a condição da Maria. Mas vemos muito menos discriminação no gelo, quase 0% discriminação, por conta da gestão.

O caso rendeu bastante repercussão e ela acabou sendo liberada para a participar, porém isso aconteceu com menos de uma hora para início da apresentação, prejudicando por ela não ter feito o reconhecimento da pista, ficando de fora da foto oficial e também não recebeu a lembrança ofertada aos participantes. Nem mesmo o uniforme recebeu.
Ficar fora da foto oficial e não ganhar presente de participação foi algo que a Confederação fez como punição e raiva da decisão judicial. Digo isto pois eles reforçavam nas redes sociais, junto das fotos, que o correto era um esporte dentro das leis.
A falta de reconhecimento de pista era a preocupação dela ganhar. Eles não queriam isso, inclusive, ela seria a última a competir, conforme ordem de saída. Ao começar a competição, trocaram ela para ser a primeira. Para nós, inclusive Maria, o que importava era estar lá, já era sua grande vitória poder competir no gênero que se identifica.
Muita gente fala de desigualdade de força, mas estamos falando de uma criança que tem a mesma quantidade hormonal que todas as outras crianças. Enquanto criança não importa o sexo, os hormônios de testosterona são semelhantes.
Quando começa o início da ação hormonal no corpo, na puberdade, então sim tem a diferenciação “menino” e “menina”. Porém esquecem que meninas transgênero que fazem o tratamento hormonal, causam o bloqueio e a sua produção hormonal de testosterona fica a 0, menor que de qualquer menina. Então não existe esta coisa de vantagem física. Existe talento, esforço e biotipo necessário, em qualquer esporte.
O que a adoção, ou melhor dizendo, a paternidade tem ensinado a vocês?
Aprender a lidar com as diferenças. Em especial não só da Maria, mas de todos os outros filhos. Cada um tem a sua demanda e a gente precisa do jogo de cintura para poder todos conviverem felizes.
Sua relação com o seu marido Gustavo mudou também após a adoção? Em relação a laços afetivos.
Muita coisa muda. A vida vai se transformando, a gente vai se unindo mais.

Como era o Cleber antes da paternidade e hoje sendo pai? Houve uma mudança no seu “eu“?
Sim. Eu sempre digo que a vida é feita de sonhos. Os sonhos mudam, antes eram meus sonhos e agora são nossos sonhos, os deles.
Qual conselho você daria a um casal gay que planeja adotar uma criança?
Adotem. Criança transforma o mundo.
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