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A comunidade LGBTQIA+ brasileira tem sido agraciada com novas figuras que alcançam a fama produzindo conteúdo educativo e específico. A internet é uma porta de entrada para o estudo, o aprendizado e a libertação de narrativas impostas. A busca pelos sonhos, pela realização profissional, os direitos horizontais, o sentimento de pertencimento; tudo o que foi negado à classe por séculos, agora é exposto e debatido ampla e abertamente através das redes.

Nos últimos anos, a drag queen Rita Von Hunty, persona de Guilherme Terreri Lima Pereira, tem sido uma das vozes mais proeminentes desse movimento. Seus vídeos, disponibilizados no canal Tempero Drag, no YouTube, têm por objetivo alertar as pessoas e educar para a vida política.

Em entrevista exclusiva dada ao GAY BLOG BR, a vencedora do Poc Awards 2020 pelo voto popular na categoria “Porta-voz” comentou sobre o que levou seu canal a alcançar o status atual, os projetos do futuro e a vida social como Professor Guilherme.

Reprodução

O canal de receitas culinárias com “pitadas” de política hoje fala exclusivamente sobre questões políticas. Havia esta intenção desde o início ou a mudança foi acontecendo de forma orgânica? Houve algum fato ou momento específico para esta “virada”?

Eu não sei se ele começa como “um canal de receitas culinárias com pitadas de política”. O canal começa como um canal de culinária vegana, apresentado por uma drag queen, entrevistando outras drag queens e pessoas influentes no meio LGBT. Sempre foi um programa político, né? Esse sempre foi o prato principal. Mas a transição para outro formado, explicitamente mais conteudista, mais voltado à ideia educação, acontece de forma orgânica, conforme há um acirramento da conjuntura, conforme eu percebo que existe uma carência, uma necessidade maior desses debates. Eu vou me propondo a fazê-los. E houve um fato e um momento específico para essa “virada”, que foi quando eu peguei um ônibus, um circular da USP, e as meninas sentadas à minha frente estavam falando que detestavam política, que não aguentavam mais as pessoas falando de política, que estavam cansadas. E eu fiquei pensando: “Se elas estão usando um ônibus, se elas estudam em uma universidade pública, elas deveriam amar política. Tudo delas depende disso”. Então, a questão primeira é essa, né? É impossível ser apolítico sem ser um grandessíssimo privilegiado pelo sistema ou um grandessíssimo alienado, transformado em massa de manobra.

Você vê o aumento da presença de figuras drags e trans com representatividade na mídia como uma evolução do pensamento da sociedade para as futuras gerações ou como uma reação ao retrocesso com relação às conquistas da Comunidade LGBTQIA+?

Eu vejo como uma evolução e resposta ao retrocesso. A gente tem que lembrar que, nos anos 90 – lembrando que nenhum fenômeno da história se repete de forma literal (Hegel já fala: “todo o grande evento da história acontece duas vezes” e o Marx, depois, vai falar que a primeira é como tragédia e a segunda como farsa) – a cultura drag teve um grande ocupar da cena popular, fosse via Priscilla, A Rainha do Deserto, fosse via Para Wong Foo, Obrigado por Tudo!, fosse via Paris is Burning, ou a popularização que a Madonna fez da cultura do gueto nova-iorquino, da cena dos Ballrooms. Então eu vejo o que tá acontecendo agora com esses olhos. E fico pensando que é uma forma de resistência, né? De ocupar, e resistir e falar. Ela acontece nos anos 90, com a deflagração neoliberal mundial, e ela volta a acontecer, agora, nos anos 2020, e com a deflagração neoliberal mundial.

Como você analisa a cultura do cancelamento e o quanto ela pode estar desviando o foco ou até enfraquecendo os movimentos de luta?

Sobre a Cultura do Cancelamento, eu me propus a fazer essa discussão no canal, num vídeo chamado Setembro Amarelo, um pouco baseado numa reflexão de uma filósofa norte-americana, que é a Natalie Wynn (ContraPoints), que é uma mulher trans e que ocupa um lugar no Youtube. Pautado um pouco no vídeo dela chamado Cancelling, no qual ela vai tentar analisar o cancelamento como um produto e um fenômeno de cultura, eu trabalho com alguns dos conceitos que ela traz sobre decupar, dissecar e tentar entender a cultura do cancelamento. Mas, nessa pergunta em específico, o que eu penso? Como eu analiso? De forma muito sucinta, muito abreviada, eu acho que o nome não designa o fenômeno. A gente não está de frente a uma cultura do cancelamento, né? Eu quero ver alguém cancelar a Coca Cola. A Pfizer. A Monsanto. Não há cultura possível de cancelar essas coisas. A Coca Cola continua sendo uma empresa arquibilhardária, a Monsanto também e a Pfizer também. É uma ilusão achar que é possível cancelar essas empresas. E eu tô falando de empresas pra dar um vislumbre de pessoas. “Ah, vamos cancelar o Woody Allen”. Não, não dá! Não dá para cancelá-lo. Ele é um gênio, produtor de cinema. “Vamos cancelar o Bolsonaro”. Quem dera desse! O nome não designa o fenômeno. O fenômeno é um linchamento virtual. É isso que eu penso.

A que você atribui o “fenômeno” de pessoas que já foram partidárias das ideias mais à esquerda estarem hoje reproduzindo o discurso alienado dos apoiadores do atual governo, enquanto que, ao mesmo tempo, apoiadores do Golpe de 2016 se tornaram críticos ferrenhos do presidente desde a época da Eleição de 2018?

Essa quarta pergunta demanda, talvez, mais tempo de resposta. Também é uma análise mais profunda. Eu acho que, de forma muito breve, a gente pode entender que dentro do sistema da democracia burguesa, da democracia liberal, a gente se vê obrigada a votar em candidatos que chegam ao segundo turno. Ponto. Quer concordemos com eles ou não. A gente passa por um segundo turno agora de Bolsonaro x Haddad. E parece, se a gente acredita que o voto é a política, que só existem essas duas opções. Então, pessoas mais partidárias às ideias da esquerda, que hoje reproduzem ou se tornaram apoiadoras do governo, a gente, talvez, as consiga perceber como pessoas que se desiludiram, se desencantaram. Ou que acreditaram numa promessa, esperaram uma melhoria, que não houve. E sobre os apoiadores do golpe que se tornaram críticos, eu teria alguma… “take it with a pinch of salt” (“olhar com um pé atrás”). Eu teria algum “desconfiômetro” dessa crítica ferrenha. Mas eu tendo a achar também que as pessoas podem reavaliar suas posições e posturas. Então, parte dessa crítica pode advir do fato de as pessoas terem se deparado com o deserto do real.

O fato de estar falando sobre Socialismo/Comunismo em uma plataforma que, de certa forma, exige visibilidade e monetização, estimula a prática de clickbaits, limita a linguagem e até alguns conteúdos para garantir retorno financeiro, gera algum tipo de conflito interno em você? 

Eu nunca limitei linguagem ou restringi conteúdo para garantir retorno financeiro e etc. Mesmo porque o YouTube não é a minha fonte de renda. Não é via YouTube que eu vivo. Eu via meu trabalho como professor. Então, não há nenhum tipo de conflito interno, nada disso. É uma empresa, uma plataforma que eu ocupo e produzo conteúdo.

Você, recentemente, abriu um pouco mais da sua vida pessoal no Instagram como Guilherme, contando um pouco sobre o “trelelê” que você está vivendo atualmente. Como é, pra você, lidar com esse interesse das pessoas não apenas pelo seu conteúdo profissional, mas também por detalhes íntimos da sua vida?

Eu lido com isso de forma muito humorística. Eu acho que as pessoas nutrem interesses que nelas são alimentados, né? A gente vive uma era de personalismos e sei lá… por exemplo, a arte cênica, desde a Revolução Industrial para cá, é majoritariamente burguesa. Uma novela, um filme, qualquer coisa dessas, uma peça de teatro, que seja mainstream ou comercial, rentável, é sobre olhar a vida de alguém. Então a gente tá sendo treinado, há quase dois séculos, a ficar se perguntando como será a vida da pessoa, com quem ela namora, quem ela se relaciona e etc. E eu acho que é um fenômeno, né? Todo mundo que se torna, de certa forma, conhecido ou conhecida, que ganha notoriedade, lida com esse interesse pessoal. Mas eu não penso muito sobre isso. Muito porque eu lido com isso de forma muito escrachada, eu faço piada disso. Então, quem acha que tem alguma ideia da minha vida pessoal via rede social, quando me conhece de verdade, descobre que não tem ideia nenhuma.

Além do canal, você tem participado de lives, dado palestras online (presenciais, quando não havia pandemia) e está escrevendo um livro. Como é transitar entre a sala de aula como professor e o Brasil inteiro como uma drag comunicadora/produtora intelectual? Você tem planos de potencializar ainda mais esse alcance?

Então… eu não sei se eu distingo as coisas, sabe? Transitar entre a sala de aula e ser drag. Porque a minha drag agora está dentro da sala de aula. E o meu professor tá dentro da minha drag. Eu só misturei, fundi, mesclei as duas funções, por assim dizer. As duas “performances” pra provocar. E se eu tenho plano de potencializar? Eu não tenho plano. A grande verdade é que eu descobri na vida que ter um plano é tão eficiente quanto mascar chiclete, assim. Amanhã passa um ônibus e te mata. E seus planos vão para a “cucuia”. Então, eu não faço planos. Eu vou vivendo, da forma que dá.

Sobre o livro, é possível adiantar um pouco sobre o processo de escrita, temas e como anda o desenvolvimento da obra?

Sobre o livro, é possível dizer que ele está em fase bem inicial (risos). Já não era pra estar. Eu ainda… eu tive um ano muito atribulado no ano passado e esse ano também está sendo. Tenho já escrita uma parte do livro, mas, sempre que volto a ela, quero reescrevê-la.  E o processo de escrita eu designaria como trabalhoso, solitário e desencadeia algum tipo de ansiedade. A palavra escrita tem uma magnitude que, talvez, a palavra falada não tenha. Eu me sinto mais a vontade me expressando verbalmente do que textualmente. Acredito que textos abrem mais espaços de leitura do que mensagens de voz.

Para além da vida dedicada a informar e educar politicamente, quais sonhos do Guilherme? Onde mais você gostaria de estar? Que espaços gostaria de ocupar? Você se considera completamente realizado – ao menos neste momento da sua vida?

“Para além da vida dedicada a informar e educar”, os meus sonhos são mais sonhos coletivos, sabe? Uma vez, eu estava batendo um papo com um amigo meu, o Alê, e ele me perguntou: “Quais os teus sonhos? Não vale dizer nada para os outros.” Eu meio que travei, sabe? Meus sonhos são outro tipo de sociedade, outro tipo de extração de energia, outro tipo de dieta. As pessoas entenderem que os animais não eram pra ser tratados desse jeito, abatidos desse jeito, consumidos desse jeito. Sei lá. Mas, então, sonhos, sonhos pessoais… eu não sei. Não sei te dizer. Em parte, eu acho que sonhar é muito perigoso. No sentido de que, às vezes, a gente se apega nos nossos sonhos e se desencanta da realidade. E a gente não pode fazer isso, sabe? Quando os sonhos se transformam numa espécie de escapismo, é muito perigoso. Mas sonhos motivadores me interessam. Por exemplo, onde eu gostaria de estar, que lugares eu gostaria de ocupar, se sou realizado… eu acho que não penso muito sobre isso. De verdade, sinceramente, respondendo a pergunta. Eu não penso sobre isso. Eu acordo, rego minhas plantas, tomo meu café, trabalho, cuido da minha vida, faço minhas coisas; acho que eu não tenho essa pretensão de olhar para o futuro como uma área que eu pudesse colonizar, sabe? E também isso é um pouco um retrato do meu processo. Eu prefiro olhar para o futuro e pensar: “Bom, vamos lá, fazendo. O que rolar, rolou. Se der, deu.”

Qual a sua reação ao vencer o PocAwards, que é um prêmio por aclamação popular? Como você se sente recebendo esse feedback carinhoso da comunidade?

Eu fiquei muito feliz, mas também surpreso, ao vencer o prêmio. Tô com o troféu aqui na minha estante (risos). Ele, agora, tá aqui segurando livros, numa prateleira que ainda não está completa. Então, ele segura meus livros. Eu fiquei muito feliz. Muito feliz. É bom. Receber esse prêmio é tipo quando alguém me encontra na rua e fala: “Oi, gosto muito do seu trabalho”. Ou quando, como ontem, um rapaz me marcou num story falando: “Quando eu imaginei que meu pai ia sentar na sala comigo para assistir uma drag queen falar de política”. E era ele filmando o pai dele super compenetrado e, na TV, estava passando Rita. Então, pra mim, esse troféu é igual essas situações, assim. Me dão esperança.




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Catarinense, 25 anos e professor de Literatura e Língua Inglesa. Homem gay, apaixonado por música e que respira futebol e cultura latino-americana.

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