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Em 2018, aconteceu a segunda edição da competição Mr. Leather Brasil, que contou com quatro leathers disputando o título. O concurso tinha como missão promover a cultura do couro no ano seguinte.
O documentário Mr. Leather, de Daniel Nolasco, acompanha o concurso e seus participantes, mostrando de forma bem humorada e fiel como funciona o universo leather e de que forma a competição agitou a comunidade fetichista gay de São Paulo
Nesta entrevista exclusiva para o GAY BLOG BR, Daniel fala sobre o documentário e também esclarecer as dúvidas que sempre tivemos sobre a comunidade fetichista dos adeptos do couro e BDSM.

Como surgiu o interesse em rodar um documentário sobre a cultura do couro/leather no Brasil?
Desde meus primeiros curtas desenvolvo uma pesquisa estética sobre as formas de representação do homoerotismo. Nessa pesquisa, tanto a estética do BDSM quanto a do leather, jutamente com as questões relacionadas aos fetiches foram aos poucos chamando minha atenção. E entender como esses grupos se (re)organizaram (esteticamente e socialmente) nessas últimas duas décadas também passou a ser um interesse no meu trabalho. Penso que refletir sobre como e por que das estéticas das comunidades fetichistas serem perseguidas também ajuda a entender o porquê se estabeleceu uma estética tão conservadora em relação a representação do sexo e do desejo homoerótico no cinema contemporâneo, no qual o “bom gosto” é a desculpa primeira para representações pasteurizadas.
No meio desse processo eu conheci o Dom Barbudo, isso tem mais de quatro anos, e viramos amigos. Passei a acompanhar mais de perto a movimentação da comunidade e conheci outras pessoas, como o Dom PC. O concurso de 2018 marcava o fim do reinado de Barbudo e o momento que ele iria passar a faixa para um novo Mr. Leather Brasil. Registrar esse momento de transição me pareceu o momento ideal para fazer o filme.
Acho que a imagem que muitas pessoas têm desse universo leather, vem dos Estados Unidos em locais como São Francisco e Nova York, de homens peludos e másculo; mas como esse fetiche veio parar no Brasil? Existe algum registro disso?
Não sei se existe um registro desse momento ou se ao menos é possível estabelecer algum marco histórico da chegada da cultura do couro no Brasil. Acho que foi uma coisa que aconteceu aos poucos graças ao trabalho de alguns artistas internacionais que são muito populares entre a população LGBTQIA+, principalmente entre os homens gays. A estética e os códigos do leather passaram a fazer parte das obras de várias artistas a partir das décadas de 1970 que são até hoje muito influentes – a Madonna, Andy Warhol, Robert Mapplethorpe, Fassbinder, Tom of Finland, Rob Halford, entre outros, utilizavam muito da estética do leather nas suas obras.
Então quando você olha para todo esse imaginário, você consegue entender como essa estética chegou ao Brasil e como ela foi apropriada pela comunidade gay. A questão é que as comunidades BDSM e leather foram muito impactadas com a crise do HIV/AIDS. Elas também foram alvos de várias políticas higienistas e assimilacionistas que ganharam muita força nos anos seguintes. Então, existiu um momento de crise muito forte dentro desse grupo. No Brasil, tem cerca de cinco anos que começou a se organizar uma comunidade leather na sua ideia mais clássica, um fenômeno que não é exclusivo ao Brasil e está acontecendo em outros lugares do mundo como na Argentina, México e Israel.

Em 2018 aconteceu a segunda edição da competição Mr. Leather Brasil. Como funciona esse concurso?
O filme acompanha essa segunda edição do concurso que seguiu de perto o modelo da competição internacional que acontece todo ano em Chicago e reúne os Mr. Leathers do mundo todo. O Mr. Leather Brasil de 2018 aconteceu durante três dias divididos em cinco fases. A primeira é uma votação online na qual qualquer pessoa, seja da comunidade ou não, vota no seu candidato preferido. Depois há o “perguntas e respostas”, no qual o candidato responde uma pergunta de cada jurado. Normalmente essas perguntas giram em torno de questões relacionadas às propostas de cada um para o desenvolvimento da comunidade. A terceira etapa é o desfile de jockstrap.
Seguido do desfile em full leather, que é um estilo muito popular no leather contemporâneo. E por último o discurso final, no qual cada candidato faz uma fala sobre o porquê ele seria a melhor pessoa para representar a comunidade. Cada fase tem uma avaliação e no final o candidato com mais pontos vence. E além de ser eleito representante da comunidade durante um ano, o vencedor também representa o Brasil no Mr. Leather Internacional em Chicago.
Existem alguma ligação entre a cultura leather e o sexo bareback (sem preservativo)?
Não, muito pelo contrário. Um dos preceitos da comunidade leather é o sexo seguro e o combate às ISTs. Isto é uma pauta muito importante para os leathers. A comunidade foi uma das primeiras a se organizar na prevenção e conscientização sobre o HIV/AIDS no começo da pandemia. O Tom of Finland, que é um dos artistas mais influentes dentro do couro, foi um dos primeiros pornógrafos a inserir o sexo com camisinha nas suas obras. Uma das regras do regulamento que o espaço/casa/instituição que realiza o concurso Mr. Leather precisa seguir para que o candidato eleito seja qualificado para concorrer em Chicago é que esse espaço não realize nenhum tipo de festa ou evento bareback.
Você é um adepto do couro também? O documentário me fez lembrar o antigo filme do Al Pacino “Parceiros da Noite” (1980).
Eu sou fetichista, mas não me considero leather. Eu tenho um grande interesse estético pela cultura, principalmente pela noção de materialidade do desejo que é muito forte dentro do leather. Mas acho que essa minha relação com o couro fica restrito ao campo do meu trabalho dentro do cinema. Sobre a lembrança do “Parceiros da Noite” eu acho que acontece porque esse filme se tornou meio iconográfico quando pensamos em leather. É uma das referências mais populares quando pensamos nesse imaginário dentro do cinema. Isso acontece por vários motivos: o filme faz um retrato bem fiel e respeitoso aos códigos e comportamentos desse grupo.

Nas cenas que foram filmadas dentro dos bares leathers as pessoas que aparecem nesses lugares eram realmente leathermens que frequentavam aqueles espaços. É um filme muito famoso em parte por causa da longa lista de controvérsia que ele provocou. Entre elas, as críticas e perseguições que sofreu por parte do movimento LGBT norte americano da época que era ligado às políticas assimilacionistas que considerava o tipo de representação que o filme traz não era desejada ou adequada e, por isso, não podia ser feito. Mas a história ressignificou o filme e atualmente ele é lido como uma obra importante para entender esse período histórico do comecinho da década de 1980, momentos antes de registrarem os primeiros casos de Aids nos Estados Unidos.

Em relação ao leather, como é a cultura fetichista gay em SP? Sei que existem festas e bares do gênero.
A comunidade leather no Brasil apesar de estar crescendo bastante nos últimos dois anos, ainda é bem pequena. Até mesmo a comunidade fetichista que não se restringe apenas ao couro é pequena. Basicamente a comunidade existe com alguma força em algumas cidades como São Paulo e Curitiba. Existe também movimentos de grupos leathers menores em outras cidades como Belo Horizonte e Campinas. Mas a comunidade tem ganhado uma certa visibilidade no meio LGBT, um reflexo disso é que em 2017 foi o primeiro ano que a comunidade fetichista foi incluída com uma “ala” dentro da parada de São Paulo.
Esse crescimento em São Paulo, especificamente, vem refletido no aumento do número de eventos e espaços voltados para o couro: o Jantar Leather organizado mensalmente pelo Dom Barbudo no Castro Burguer; o Leather na Rua que acontece no centro da cidade; algumas festas leathers que acontecem na Upgrade, na Eagle e em outras casas; em festas fetichistas em que o leather está inserido como o Luxúria, entre outras; e na abertura de algumas lojas que são especializadas em peças de couro.

Todos os homens que aparecem no documentário são os candidatos do concurso Mr. Leather Brasil?
Os personagens principais são os quatro concorrentes do concurso – Dom PC, Kake, Maoriguy e Deh Leather – mais o Dom Barbudo que foi o primeiro Mr. Leather Brasil. Existem outros personagens que são importantes que estão ligados ao concurso e a comunidade de diversas formas, como o Heitor Werneck que foi um dos jurados, a Francine Zanqui que fez uma série de entrevistas com os candidatos para rádio Agita Planeta, ou o Gama que participa de uma performance em uma cena gravada no centro de São Paulo, entre outras pessoas.
Existe uma conexão entre o leather e o BDSM (Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo), poderia falar mais a respeito para quem é leigo no assunto? Entretanto, muitos adeptos do BDSM não usam couro ou fazem parte desse universo, não é?
O leather surge de uma das estéticas do BDSM – do fetiche e da visualidade ligada ao uso de peças e artigos de couro, como o harness (o arreio). É uma prática fetichista que se tornou muito popular entre homens gays. O BDSM e o Leather têm suas especificidades, mas sempre tiveram uma ligação bem forte. Mas é isso que você colocou, uma pessoa pode ser leather e gostar de BDSM ou não, assim como assim um praticante de BDSM pode não ser leather.

Os adeptos do fetiche leather/couro sofrem algum tipo de preconceito da comunidade LGBT? E da sociedade em geral?
Eu acredito que sim. Tem uma fala no filme que um personagem diz que se assumir fetichista é sair do armário uma segunda vez, acho que isso expressa bem o receio que a comunidade tem de sofrer algum tipo de preconceito. Isso me parece ser o resultado do fato de boa parte da comunidade LGBT atualmente ter abraçado muito acriticamente o assimilacionismo e a ideia que existe um estilo de comportamento que deve ser seguido por todos – aquele que emula os relacionamentos heterossexuais e seus valores burgueses. Existe um desconhecimento de grande parte da população sobre o que é ser fetichista, o que é ser BDSM, o que é ser um leather. E se esse desconhecimento existe até mesmo dentro da comunidade LGBT, imagina entre os heterossexuais (os pais, os amigos, parentes, colegas de trabalho) para qual essa pessoa também tem que se assumir fetichista.

Como tem sido o feedback do público em relação ao documentário?
O filme no geral sempre teve uma boa receptividade do público, principalmente por causa do humor. Acho que as pessoas não esperam que o filme seja bem humorado. Também tem o fato que é um filme que se preocupa em explicar diversos aspectos da cultura leather que a maioria das pessoas desconhece, então sempre há um certo tom de descoberta por parte do público sobre determinadas questões. As críticas normalmente giram em torno do filme deixar de lado o aspecto mais fabular e de encenação da primeira parte, que gera uma certa decepção em algumas pessoas, outras acham que o filme tem um “excesso” de informação.
O documentário participou de mais de trinta festivais mundo afora, em qual país você notou uma receptividade maior ao tema?
Dos festivais que acompanhei ou obtive algum feedback a melhor receptividade foi na Argentina quando o filme foi exibido no BAFICI em Buenos Aires. A comunidade leather de lá estava começando a se reorganizar promovendo alguns encontros e eles estavam presente em uma das sessões do filme. Depois da exibição teve um debate que se estendeu para fora do cinema e foi noite adentro. Também saiu uma publicação em um site brasileiro, o BLUBR, com depoimentos deles sobre o filme. Em Israel também foi bastante interessante. Foram duas sessões lotadas. Depois a comunidade leather israelense organizou uma festa, teve um engajamento grande deles para divulgar o filme e movimentar as sessões.

Ele foi lançado comercialmente em fevereiro, e logo em seguida veio a pandemia, isso de certa forma deve ter prejudicado bastante a divulgação, não?
O projeto da Olhar que está fazendo a distribuição do filme era fazer lançamentos especiais em algumas cidades. Em vez de lançar o filme no máximo de cidades ao mesmo tempo, como acontece em lançamentos convencionais, o filme seria lançado em uma cidade por vez até a metade do ano. O projeto incluía as sessões na sala de cinema, um debate depois de uma das sessões e uma festa com temática leather. Fizemos a estreia em Curitiba em fevereiro, a segunda cidade seria Goiânia em março, mas aí veio a pandemia e os cinemas fecharam. Já tinha sido planejado o lançamento no Rio e em São Paulo. Mas o filme também foi lançado nas plataformas de VOD (no NOW) em fevereiro e no Canal Brasil dentro da programação do mês da diversidade, então acho que as pessoas que estavam/estão com interesse de ver o documentário puderam/podem ver em casa.

O que te deixou mais surpreso ou chocado nesse universo do couro?
Não teve nada que me deixou chocado ou mesmo surpreso. Mas eu aprendi muito sobre moda e como cada dress code pode representar um pensamento político diferente. Uma das primeiras sequências pensadas para o filme são as personagens falando sobre as roupas. Eu sabia da importância da roupa para a comunidade – uma jaqueta de couro não é apenas uma jaqueta, existe toda uma narrativa sobre aquela peça, todo um simbolismo, um código que vai muito além da peça em si. O que descobri fazendo o filme é como a moda leather mudou ao longo dos anos e como essa mudança está muito ligada ao momento político vivido em cada época. Ou como as mudanças dentro da moda em couro está diretamente conectado com o momento histórico.
Por exemplo, eu sabia que o full leather era um dress code bem aceito nos dias de hoje, basicamente todo mundo tem sua camisa e sua gravata no armário, mas não sabia que esse estilo tá diretamente ligado a uma reformulação de como a questão do sexo ou da “hiper sexualização” é vista dentro do leather contemporâneo; ou de como existe toda uma discussão sobre o leather vegetal ou de outras origens para além do animal, principalmente por membros da comunidade que são veganas ou que propõe outras formas de se usar o couro. Essas nuances foi algo que descobri ao longo das filmagens e que coloquei no filme. Queria muito que ao final da sessão as pessoas conseguissem entender algumas posições políticas e sexuais só pelo vestuário de cada personagem. Que as diferenças entre o Kake e seu estilo mais clássico, do Dom PC com sua preferência pelo Full Leather, e o Maoriguy com a sua mistura de texturas e peças exclusivas feitas por ele pudessem ser lidas e decodificadas por quem assiste ao filme.
Concurso Mister Leather Brasil é tema de documentário que estreia no streaming
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