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Após ser exibido no Festival de Cannes em 2019, o documentário “Indianara” foi selecionado para 40 Festivais Internacionais e apresentado em 15 países da Europa, América e Ásia. Aqui, no Brasil, levou o Coelho de Ouro de Melhor Longa (Júri) no Festival MixBrasil e estreou na última quinta-feira, 25, nas plataformas do iTunes, Google Play, NOW, Looke, Vivo Play e Amazon. A partir do dia 05 de julho, mais de 195 países terão acesso à obra pelo MUBI. 

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Vegana, anticapitalista e puta. É desta forma que Indiana Siqueira se define em seu filme biográfico. Siqueira milita não só pela sobrevivência das pessoas LGBTI, mas também pelos oprimidos da sociedade em geral. O filme retrata o cotidiano de Indianara diante da perda da companheira de luta, Marielle Franco, e do avanço do totalitarismo no Brasil, buscando forças para embrenhar-se em um último ato de resistência.

O GAY BLOG BR conversou com exclusividade com os idealizadores da obra, a francesa Aude Chevalier-Beaumel e o brasileiro Marcelo Barbosa.

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Como vocês conheceram a história da Indianara?  

Aude Chevalier-Beaumel – Conheci Indianara em 2014, através de Rogéria Peixinho, ativista feminista lésbica negra. Eu estava dirigindo e gravando o documentário “Sexo, Pregações e Política”, um filme sobre o avanço dos evangélicos na política no Brasil e o retrocesso das liberdades individuais. Isso durante as eleições presidenciais de 2014 até o impeachment da Dilma. Daí, entrei em contato com Indianara para uma entrevista e ela marcou comigo no Dia da Memória Trans, no gabinete do deputado federal Jean Wyllys, na época ela trabalhava com ele. Depois continuamos a gravação na praça pública, onde, nesse Dia da Memória Trans, ela fez um ato em formato de happening (acontecimento), como ela sempre faz. Ela colocou os seios dela à vista, nus, numa mão um megafone, e na outra as bandeiras LGBTI e Trans e assim enuncia os nomes das pessoas transgêneras assassinadas durante o ano. O pequeno público respondia presente a cada nome. Foi uma imagem duplamente marcante para mim, primeiramente, visualmente, parecia uma Mariana da revolução francesa como no quadro de Delacroix “La liberté guidant le peuple”. Uma imagem de libertação! E marcante pelo número de vítimas trans assassinadas no Brasil. A partir daí, eu seguia ela já com a ideia de fazer um filme sobre ela. Ela também acompanhou o filme anterior, nos debates e nos aproximamos assim. Em 2017, eu volto nesse mesmo dia, da memória trans, na Cinelândia, junto com Marcelo para a gente realizar a nossa primeira gravação

Marcelo Barbosa – O primeiro contato meu foi no mesmo lugar, as escadarias da Câmara Municipal, na Cinelândia, que é tão simbólica para as lutas no Rio de Janeiro. Enquanto aguardava o início do ato, eu tomei coragem para ir cumprimentá-la. A primeira coisa que ela me disse foi: “Tô morta de cansaço”. Isso ficou mais evidente em nossos outros encontros e esse fechamento do ciclo já nos indicou um arco para a história. O arco de Indianara e da Casa Nem, desde o início, eram um paralelo pra gente do arco Nova República do Brasil. Mas era urgente agir rápido, tudo já estava acontecendo em frente dos nossos olhos. No início não falávamos tanto, fomos aprofundando na história já com a câmera ligada, não houve preparação, a não ser um cruzamento de ideais nossos com os dela.

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Diante de algumas figuras representativas do meio LGBTI no Brasil. Por que Indianara? 

Aude Chevalier-Beaumel – A gente não queria fazer um filme sobre uma pessoa LGBTI e a gente não enxergava Indianara através do gênero dela mas através da luta pelos direitos humanos e, sobretudo, vimos na Indianara uma pessoa de vanguarda, muito em avanço sobre vários assuntos. Uma pessoa que empodera quem está por perto dela. Uma pessoa que vive em adequação com as ideias e tem respostas reais, concretas e até simbólicas para as problemáticas sociais. Mas, se quisermos falar do gênero, Indianara acho que se destaca pela não-binaridade dela. Ele quebra todos os padrões inclusive os padrões Trans e LGBTI. Hoje por exemplo ela deixe o bigode crescer e é muito criticada por algumas pessoas trans, mas ela é livre, livre de qualquer padrões e é essa eu acho a mensagem dela. Ela não quer ser chamada de mulher, de homem ou de pessoa trans,  apenas de ser humano de peito e pau, e, digo eu… de muito mais!

Marcelo Barbosa – Definitivamente foi o fato de ela ser não-binária e não apenas na questão do gênero, mas, mesmo politicamente e na questão moral. Calou muito forte em mim isso, nesse momento em que a sociedade e os argumentos estão divididos. Enxergamos na Indianara uma maneira de falar de empatia sem ser piegas e sem ditar regras. A história se desenhou para nós como uma anatomia da empatia, que é tão falada e difícil de aplicar. Fora isso, sabíamos que a força dela nos transformaria e queríamos registrar a própria transformação do nosso olhar, como testemunho de uma mudança possível para todos. E por último, ela é um ser cinematográfico, uma  personagem que você encontra poucas vezes na vida. Veja as cenas com o marido, juntos têm um tempo que muitos atores lutam para ter. Enfim, uma história que devia ser contada, não fosse por nós, por outro. Daí medimos a importância de colocar na galeria do cinema o mito urbano que ela já era nas ruas.

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Interessante que no doc “Indianara” não há aqueles depoimentos diante da câmera tão comuns na linguagem de documentários, na verdade a câmera acompanha o dia a dia, a rotina dela (e das acolhidas) como se não estivesse ali. Como vocês conseguiram deixá-la tão à vontade diante de uma equipe por trás? 

Aude Chevalier-Beaumel – A equipe era apenas Marcelo e eu, nas gravações. Primeiro, por necessidade, pois a gente não tinha orçamento, nem equipe para gravar e tinha uma urgência de gravar naquele momento, urgência na política e na vida da Indianara, da Casa Nem, o abrigo e na vida das minorias que ela representa. E Indianara nunca enxergou a gente como uma equipe de câmera, ela nem ligava pra câmera, mas fazia a gente participar da vida dela e da comunidade como seres humanos. Claro que ela era consciente e de acordo com o registro que a gente fazia. Ela tem uma consciência muito grande do Registro, na necessidade de registrar para as futuras gerações, isso é o papel do documentário. Sobre não ter entrevista, a gente chegou até a fazer uma longa entrevista com Indianara, no final da gravação, meio que para guardar esse registro também. Mas eu, pessoalmente sentia que o filme ia existir sem entrevistas, acho que Marcelo também. A gente queria fazer um filme de cinema, um filme popular, como uma ficção, que possa tocar o máximo de pessoas. E o filme no final foi montado assim, como um filme clássico, seguindo os ensinamentos dos mestres em roteiro e construções narrativas. A gente burla com a temporalidade dos eventos, a serviço de uma narração atraente, forte, com curvas e emoções. Enfim, a entrevista não era necessária, os acontecimentos e tudo que a gente vivia e registrava já era demais para construir um filme.

Marcelo Barbosa – Diante do desafio de mostrar o que há em comum com todos nós no interior de um mundo tão incomum como a Casa Nem, a fluidez ganhou importância. Nisso discutimos muito eu, Aude e Quentin, nosso montador. Ao registrar situações cotidianas a história vai pouco a pouco entrando em camadas mais profundas, e quando espectador nota já está íntimo dos personagens e é mais difícil de escapar (risos). Era uma aposta, não sabíamos se daria certo. Sermos apenas dois ajudou muito, claro. Mas, não precisamos deixá-la à vontade, ela já estava, precisávamos era vibrar em sintonia com as questões que estavam sendo resolvidas, no início como um espelho, tentando devolver no mesmo tom o que registrávamos. Mas, depois indo além do registro, a gente queria “ser“ a Indianara. Ao ponto de usarmos quadros muito próximos e fechados, onde o rosto dela mal cabia, com a ideia de não mais acompanhá-la ou de ir atrás, mas sim de ir literalmente junto com ela, “adivinhando” cada pequeno movimento. A ideia era ter a conexão mais profunda possível, quase uma meditação no meio da confusão. Quando acontecia era uma beleza, mas os joelhos sofrem.

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O documentário acompanha alguns momentos importantes, principalmente na área política: vitória do Bolsonaro, “Fora Temer” etc. O registro dessas passagens em diferentes momentos foi intencional ou foi devido a um atraso no cronograma das filmagens? Quanto tempo durou as gravações?

Marcelo Barbosa – Com o filme pronto é mais fácil de falar, mas na hora é um pouco intuitivo. Mas, sim, tenho um pouco mais de dificuldade em colocar um ponto final nessas coisas, em dizer está pronto. Tentamos no meio do processo fazer uma primeira edição que foi frustrante e nosso montador pediu para repensarmos a história. Então eu achava que o arco de Indianara e do país ainda não tinha se cumprido, então forcei um pouco para esticar as filmagens. Infelizmente ou felizmente tenho a obsessão como estilo, gostaria de ser mais rápido. Fora isso, desde que morava em Brasília, tenho um fascínio por manifestações políticas, de gente reunida, de confusão, não sei bem por que. Ia em todas, até mesmo as da direita, fui à posse de todos presidentes. Por isso as filmagens duraram dois anos, com hiatos, claro.

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Em um determinado momento, o espectador se depara com a informação que Indianara esteve presa na Europa, entretanto isso é revelado de forma muito sucinta, sem se aprofundar no assunto. Por que o documentário não revelou as motivações dessa prisão na França? Surge uma curiosidade sobre isso por parte de quem assiste. 

Aude Chevalier-Beaumel – Em algum momento a gente pensou em contar a história de Indianara, que não é pouca coisa, a gente pensou em muitas linguagem, até doc ficção para retratar cenas do passado. Mas era muita coisas e a gente ia se perder. Sobretudo, queríamos mostrar a Indianara do presente e em relação com o presente, com o que estávamos vivendo no Brasil naquele momento, principalmente na política. Então o presente foi a nossa resposta. Daí a gente passa brevemente sobre alguns acontecimentos, importantes para a gente, mas sem entrar nas profundezas. Espero que outras pessoas possam fazer esse filme, tem muitas histórias para contar. Mas nós nos agarramos ao presente, que já era muito cheio, muito conturbado e complexo a entender e descrever.  

Marcelo Barbosa – O que pautou muito a gente foi a ideia de fazer um retrato no sentido das artes plásticas mesmo, da pintura. Não sei se tem a ver com nossa formação, provavelmente. Era um compromisso não dito entre nós de crença na imagem, de que os olhares, a pele os movimentos de Indianara poderiam responder e poupar muita saliva sobre de onde ela vem. Mas existem histórias incríveis como a de uma padre francês com quem ela trocava correspondência na prisão, que pensamos em ir atrás, era uma tentação. No final afastamos tudo o que parecia exótico pelo exótico. E, claro, a própria filmagem descontínua não te deixa fechar todas as questões. O jeito foi escancarar essas arestas, deixar em aberto mesmo. O que parece que trouxe um efeito inesperado de que ao completar as lacunas, o público não possa impingir uma moral já pronta de antemão. Uma suspensão breve do julgamento que acho útil para falar de assuntos tão carregados de preconceito como a queda do sistema vigentes, liberdade dos corpos ou a prostituição.

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O que mais te surpreendeu na história da Indianara? 

Aude Chevalier-Beaumel – Eu como francesa adoro as peripécias dela na França! Mas como eu disse, é outro filme. Mas Indianara surpreende a todo momento, ela tem respostas aos acontecimentos, que só ela tem. Muitas das vezes com provocação e muito humor. Com uma linguagem nova a cada momento, se desconstruindo ela mesmo a cada momento. Além de ativista, Indianara é uma artista, ela é a artista e o museu ao mesmo tempo. O corpo dela é uma museu aberto a todos, que expõe a luta, as feridas e o orgulho de muitas pessoas e dela mesma. Um museu com exposições permanentes e outras temporárias, efêmeras. E claro, ela é também a curadora deste museu!

Marcelo Barbosa – Tantas coisas, talvez o fato de ter passado por tantas lutas, mas não ter o ressentimento como marca, muito pelo contrário. Por mais que seja forte, sempre a vi disposta ao debate, claro com ironia, humor e atitude.

Nos últimos anos tivemos alguns documentários brasileiros sobre personalidades da comunidade LGBTQI+, tais como Lorna Washington, Luana Muniz e outras. Na sua opinião a que se deve esse interesse por registrar a história e trajetória de figuras da comunidade LGBT?  

Aude Chevalier-Beaumel – Pode ser que essas pessoas tenham soluções diferentes para os problemas. Elas são revolucionárias pois se livraram do gênero, essa coisa que é imposta desde o nascimento. Se tornam líderes, exemplos fortes e empoderadores. Tudo é possível para elas, se mudaram de gênero, tudo é possível para se livrar das barreiras e viver melhor juntos. Isso vale para todos os domínios, do mais íntimo, ao mais público.

Marcelo Barbosa – Ainda estamos entendendo como as pautas das tais “minorias identitárias” podem nos influenciar. O que parece claro é que as novidades não virão que de quem já dita os comportamentos desde sempre. Os documentários, a arte como um todo poderia e poderá moldar esse desenho de uma nova sociedade. Beber desse conhecimento é nosso caminho. Vivermos uma vida somente dentro dos nossos preceitos nos diminui demais. Acredito que as maiores habilidades humanas são as coletivas.




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