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Eu adoro observar as pessoas. Esses dias, estava no bar do meu restaurante mexicano favorito no SOMA, em San Francisco, e não pude evitar escutar uma conversa que acontecia ali perto. O cara sentado ao meu lado estava contando ao seu amigo que tinha acabado de comprar um novo celular Pixel.

Alguns dias depois de comprá-lo, ele tinha caído no concreto e quebrado totalmente, sem chance de conserto. Apesar da tela continuar intacta, ele nem conseguiu ligá-lo novamente. Enquanto contava a história, ele estava estranhamente orgulhoso, porque, como entendi mais tarde, ele tinha dado um jeito de conseguir um aparelho novo de graça: mentiu para o fabricante e disse que um app que ele havia baixado na Google Play Store tinha estragado seu celular e que por isso o aparelho não ligava mais (fabricantes de celulares costumam oferecer garantia para celulares hackeados por apps de terceiros).

O agente do atendimento ao cliente acreditou na história e ofereceu a ele um celular novo se ele mandasse o antigo de volta. “O celular era responsabilidade dos correios, não minha”, lembro que ele disse ao amigo. “Eles deduziram que o aparelho havia sido danificado durante o transporte.” Seu amigo, que ele ficava chamando de “mano”, escutava a história com atenção. Eles conversaram por mais algumas horas, sem dizer muita coisa.

- BKDR -
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A cegueira ao remorso que ouvi na história do cara do bar me incomoda. É o tipo de desprezo que surge da arrogância. Eu me incomodo muito com essa arrogância crescente que vejo na sociedade, tanto na internet quanto na vida real, e acredito que podemos ser melhores.

Num sentido mais neutro, podemos ter direitos que merecemos ou, mais precisamente, a percepção de um direito merecido. Todos temos direitos a certas coisas: na sociedade brasileira, por exemplo, a constituição nos dá o direito a certas liberdades, como a liberdade de expressão e de reunião. Mas direitos são códigos e estruturas e só se aproximam ou tentam refletir como nossas vidas cotidianas deveriam ser. O que acontece quando, devido a uma injustiça, ofensa ou danos, ou, em casos mais raros, mas não incomuns, narcisismo e outras patologias, nós entendemos que merecemos certos direitos que não temos que, em outras palavras, geram um déficit no que entendemos que merecemos e no que acreditamos que devemos ter? E como podemos confrontar esse déficit?

Comecei a me interessar por esse tipo de coisa antes de encontrar os manos no bar e seus esquemas idiotas. As respostas são complicadas, porque nos fazem determinar nossas necessidades e prioridades coletivas e, no fim, acabam fazendo com que todos concordemos com um determinado conjunto de direitos: o processo democrático confuso e sem fim de tentar resolver o paradoxo insolúvel de encontrar algo em comum em uma sociedade de indivíduos. Mas, por mais que ele seja confuso, está claro que precisamos tentar, porque se não tentarmos e nos resignarmos à forma como as coisas são, as coisas saem do controle: um observador casual do recente escândalo nas aprovações de faculdades dos EUA reconhece facilmente o tipo de direitos privilegiados que podem sobrecarregar e até mesmo derrubar a base estável de uma estrutura sensível de direitos e responsabilidades com que a sociedade concorda quando a fama e o dinheiro deturpam a ideia do que é merecido e do que é devido.

Pessoas Os Donos da Razão | Orkut Büyükkökten
Os Donos da Razão | Orkut Buyukkokten

Há uma relação notável entre a nossa ideia deturpada do merecimento individual e do aumento do uso de redes sociais on-line, uma conexão perversa entre a individualização que acontece em redes sociais como o Facebook e o Instagram e uma sensação crescente de que fomos enganados. Talvez as redes sociais tenham nos condicionado tanto a esperar formas egoístas de gratificação que perdemos nossa capacidade de nos importar com os outros. Talvez seja tão simples quanto reconhecer que todos temos muito mais informações agora do que precisávamos saber e que talvez até queríamos saber mais sobre outras pessoas. Assim, temos muito mais oportunidades de perceber ao nos comparar com os outros, como a desigualdade entre nós é grande.

Em uma sociedade capitalista livre como a nossa, em que deve haver, inerente ao seu funcionamento básico (e, talvez, necessária para que ela prospere), algum tipo de medida de desigualdade, sempre haverá a injustiça real e percebida. O que me preocupa, e comecei a notar isso cada vez mais, é que cada vez mais respondemos a esse desprezo percebido e real com uma arrogância destrutiva.

A arrogância destrutiva é quando, em resposta a um desprezo ou dano percebido, algo que ameace nossa ideia do que merecemos ou do que devem a nós, justificamos ações prejudiciais, vingativas, rancorosas ou perigosas para os outros, mesmo que devido a um rancor válido por algo injusto que aconteceu no passado. A arrogância destrutiva repete a raiva e o abuso que sofremos em nossas interações com outras pessoas; é a vingança sem piedade que entorpece a mente dos aflitos e enfurecidos.

Ela pode ter várias formas. É bem documentado que estupradores têm uma alta probabilidade de terem sido sexualmente abusados na infância. Quando um aluno comete bullying com outro na escola, faz isso porque se sente inseguro e impotente, provavelmente porque também já teve a segurança e o poder tirados dele.

Também podemos observar a arrogância destrutiva com muita clareza na internet, principalmente em apps de relacionamento. Minhas experiências em apps de relacionamento foram aterrorizantes, bem como os comportamentos que encontrei neles: abuso e bullying, piadas, negligência, rejeição, descuido e uma maldade em geral. Talvez não seja tão traumático quanto os tipos de abuso e ciberbullying que são especialmente comuns entre os jovens, mas a prática chamada de ghosting é um ótimo exemplo de como comportamentos nocivos podem se repetir on-line. Ghosting é cortar totalmente a comunicação com outra pessoa sem explicação ou motivo. Seja inadvertidamente ou não, o ghosting causa grandes danos psicológicos a outras pessoas.

É uma forma de arrogância destrutiva: meu direito de ignorar você é mais importante do que o seu direito a uma resposta clara e direta. Quando alguém para de nos responder, temos duas opções desconfortáveis: internalizar a rejeição da pessoa que para de falar conosco, deduzindo que somos o motivo e a causa do silêncio, ou ter pena dela, considerando que a ausência dela é um sinal de seus próprios problemas. Independentemente de como escolhemos enxergar isso, ficamos atrás da tela sem nenhum conforto real e, talvez, ainda mais preocupante, ficamos em um mundo em que, amanhã, voltaremos a esses apps, pois sabemos que uma das experiências mais horríveis e perturbadoras de todas se tornou uma prática socialmente aceita. Como nos sentimos desprezíveis, invisíveis e rejeitados quando sofremos com o ghosting, justificamos deixar de responder a próxima pessoa que conhecemos pois pensamos que ela também pode resolver nos ignorar, tratando-a da mesma forma que esperamos que ela nos trate. Em outras palavras, ignoramos as pessoas porque fomos ignorados. É um ciclo sem fim de feedback negativo, e arrogância destrutiva continua…

Claro, nem todo comportamento ruim pode ser explicado pela percepção ou experiência real de uma pessoa que foi injustiçada. Até onde sabemos, só o oportunismo negligente ou um impulso anarquista pode explicar as ações daquele cara no bar. Mas, pensando melhor, talvez ele tenha crescido em uma família carente e, até aquele momento, tenha tido muita coisa roubada dele injustamente em sua vida? Talvez não tivesse sido considerado para uma promoção no trabalho, apesar de anos de dedicação e esforço? Talvez um dia ele tenha simplesmente seguido as regras e visto outra pessoa quebrá-las e ficar acima dele? A questão é que, se uma pessoa se voltar para a arrogância destrutiva (no caso do cara do bar, a parte destrutiva da versão dele da arrogância seria algo próximo a roubo), como uma pedra jogada em um lago parado, nossas ações podem ter um efeito dominó gigante. Passei toda a minha vida adulta estudando e desenvolvendo redes sociais, pensando sobre as conexões na era digital. Nada é mais importante para mim do que como podemos começar a nos conectar uns aos outros on-line de forma mais positiva, de forma que possamos evitar repetir esses hábitos e comportamentos destrutivos. Podemos quebrar esse ciclo, mas precisamos de muito esforço e atenção.

A falsa modéstia, agressividade passiva e autodepreciação, com certeza, não são a resposta. Não podemos quebrar esse ciclo de arrogância destrutiva se fingirmos que algo errado é certo. Um desafio de reconhecer a dor e o trauma de outra pessoa são as limitações do que podemos saber sobre os outros e como eles se sentem. O que quero dizer é que, não importa se uma desfeita é real ou percebida, se o senso de direito de alguém é justificado ou não, eu não devo decidir algo sobre você. Como Leslie Jamison argumenta em sua coleção de artigos, Os Exames de Empatia, ter compaixão e acreditar não são a mesma coisa.

Mesmo que você seja o tipo de pessoa que se irrita com o politicamente correto da esquerda, chamando os liberais de “floquinhos de neve” e se preocupando com como nossa cultura está se tornando “mole demais”, provavelmente não seria bom você responder à ideia de alguém sobre injustiça com desprezo. E assim como as pessoas de direita não devem fiscalizar os sentimentos dos outros, a esquerda também não deve deduzir que todo mundo entende por que nos sentimos injustiçados. Não podemos esperar um tratamento melhor se não o exigirmos. Não podemos esperar que as pessoas nos tratem com respeito, dignidade e compaixão se nos recusamos a nos responsabilizarmos. Não faremos bem a ninguém se todos nós, individualmente, não fizermos nada além de postar tweets mal-educados enquanto bebemos nossas próprias mágoas.

Uma atitude melhor seria exibir um bom comportamento; se esforçar para se envolver com outras pessoas, abrindo um diálogo sincero sobre injustiças e mágoas do passado. Explicar a outras pessoas como você entendeu a injustiça e reconhecer como você se sente é a raiz do senso de direito construtivo. O senso de direito construtivo começa ao reconhecer sua dor, trauma e sensação de ter sido injustiçado. É reconhecer seu valor e seu direito de ser tratado com dignidade e respeito. É também reconhecer a dor e o trauma, o valor e o direito dos outros de serem tratados com dignidade e respeito.

Quando desenvolvemos um senso de direito construtivo, temos mais poder para interromper nossos próprios comportamentos destrutivos e, consequentemente, nos tornamos menos propensos a repassarmos esses comportamentos destrutivos para a próxima geração. Nos tornamos o exemplo de como queremos ser tratados pelos outros. Nos tornamos o exemplo de senso de direito com que todos podemos concordar: o direito de sermos tratados de forma justa e decente. Nós nos damos espaço para perdoar. Também podemos nos permitir a audacidade do direito de melhorar um pouquinho o dia de alguém, fazer o bem e trazê-lo de volta ao mundo. A melhor forma de se animar, declarou Mark Twain, correndo o risco de parecer um pouco sério demais, é tentar animar outra pessoa. Isso é algo com que posso concordar.




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Empreendedor pioneiro em mídias sociais de São Francisco e cofundador e CEO da hello.com, dedica-se a reunir pessoas, online e offline. Construiu uma das primeiras redes sociais, o orkut.com, que inspirou mais de 300 milhões de usuários ao redor do mundo a se unirem e fazerem conexões autênticas. Orkut é gay e militante da diversidade e da igualdade. Comentarista frequente sobre impactos positivos e negativos das redes sociais, também é um ávido programador, barman e massagista profissional. Adora dançar e é conhecido por fazer uma das melhores festas durante o Pride em São Francisco. Acompanhe o Orkut em instagram.com/orkutb e participe da nova rede social: hello.com